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13. A Segunda Encruzilhada

“Chovi amor
Em pessoas
Que preferem
Telhados”
(Zack Magiezi)

Violeta entrou no quarto arrastando os pés, e se sentou em frente a penteadeira. Encarou o próprio reflexo e não gostou do que viu quando tirou o colar de quartzo rosa do pescoço.
Ela parecia cansada. Mais velha, até.
Seus olhos estavam pesados.
São esses os sintomas de um coração partido?
Ela sabia que estava exagerando, que Lucas estava apenas se sentindo mal, por isso fora tão frio.
Não quero nada sério no momento, as palavras dele.
Violeta franziu os lábios, com desaprovação.
- Ora, aquele garoto tem sérios problemas. A culpa não é minha se ele não sabe o que quer.
Batidas na porta a fizeram se virar.
Era Ana Rosa.
- Precisamos conversar, garota.
Violeta suspirou.
- Precisamos mesmo?
- É claro. Ou quer que eu te coloque de castigo, como uma criança? Afinal, você andou brincando com feitiços, não é?
- Eu me responsabilizo pelos meus atos. – Cospe Violeta, sentindo o coração disparar. – Eu sei o que estou fazendo.
- Você pensa que sabe. – Diz Ana Rosa, ríspida. – É esse o problema. Continue ameaçando as pessoas com bruxaria baixa, continue aparecendo nos sonhos dos garotos e continue fazendo feitiços de beleza desnecessários, quebrando espelhos e aterrorizando suas colegas. Continue, e todas nós vamos pagar o preço.
- Preço? – Violeta mal continha a raiva. – Que preço? Você quer que eu aprenda magia e não use?
- Não com propósitos egoístas.
- Eu não sou egoísta! Eu só estou vivendo a minha vida. Algumas garotas tem dinheiro, outras são lindas, e eu sou uma bruxa. É tudo o que eu sou e tudo o que eu tenho.
Ana Rosa franziu o cenho.
- Você é mais do que uma bruxa, Violeta. Você é uma garota, quase uma mulher. Você é uma representação da Deusa e da lua em carne e osso. Lembre-se disso.
Violeta se sentou na cama, encarando os próprios pés.
- Eu não vou parar.
- Tudo bem. – Diz Ana Rosa, secamente. – Mas lembre-se que isso não se trata apenas de você e eu. Lembre-se de Lena. Quando você se expõe para as pessoas, está expondo a ela também.
Violeta se encolhe, depois volta a encarar Ana Rosa.
- Por que faz questão de me dizer essas coisas? E por que Lucas mora aqui? E o que há de errado com ele? Ele está tão estranho....
- Aquele guri é sempre estranho. – Desconversa Ana Rosa. – Prometi não me meter entre vocês dois. Apenas deixe-o descansar.
- Mas se ele me magoar, você vai expulsá-lo? – Desafia Violeta.
- Claro. – Ana Rosa lhe dá as costas, saindo do quarto. – Nós bruxas cuidamos uma das outras, não é?

***

Fernando desceu para a cozinha.
Já era noite, e ele precisava comer alguma coisa.
Havia tido febre durante a tarde, mas um banho e alguns comprimidos o fizeram se sentir melhor.
Olhou em volta, para a casa fria e vazia.
Ele se perguntava se era normal uma pessoa se sentir tão sufocada na própria casa. Era como se as paredes desprovidas de vida se revezassem em vigiá-lo.
Fernando suspirou, colocando as sobras de comida do dia anterior em um prato e esquentando no microondas.
Ele gostaria de ter irmãos.
Mas sabia que isso era impossível.
Edgar Bragança jamais se casaria de novo. Fernando sabia que o pai sentia a perda da mãe dele todos os dias, como se ela houvesse morrido no dia anterior e não há mais de doze anos.
As fotos dela ficavam bem guardadas em uma gaveta, e Fernando sabia que o pai ainda chorava se via alguma delas.
Ele não duvidava de que o pai a havia amado muito, mas às vezes sentia raiva. Afinal, ele sentia a falta dela também.
E o pai, preso àquele luto eterno, parecia se esquecer que ele existia.
Às vezes Fernando imaginava se o pai não preferiria que ele nunca houvesse nascido. Afinal, ele era uma lembrança viva da mãe que o pai tinha que encarar todos os dias.
Era por isso que Edgar passava tanto tempo fora?
Era por isso que o deixava tão sozinho?
Fernando foi até o escritório e abriu uma gaveta da escrivaninha.
Olhou para a foto da mãe e imaginou como tudo seria diferente se ela ainda estivesse ali.
Ela tinha os olhos verdes iguais aos dele, e o cabelo castanho e longo... Parecido com o de Violeta.
A angústia o afogava.
Por que tudo o fazia se lembrar de Violeta?
Guardou a foto, relutante.
Ele precisava continuar seguindo as pistas do mistério dela. Mesmo que o enlouquecesse. Que acabasse mesmo se apaixonando por ela.

***

Na manhã seguinte, Lucas acordou sentindo cada osso do corpo doer.
Olhou em volta.
Estava no meio da floresta, cercado por árvores e mato, caído no chão de mal jeito, completamente nu.
Sentiu gosto de sangue, e percebeu que havia um corte no lábio inferior.
Suas mãos estavam cheias de sangue seco, e o zunido das moscas chamou sua atenção para o cadáver de uma capivara ali perto.
Bom, pelo menos o plano de Ana Rosa havia funcionado de novo.
Eu te domei, monstro...
Um pouco zonzo, começou a procurar a mochila que havia deixado dentro do tronco oco de uma árvore.
Vestiu as roupas limpas, calçou os chinelos e lavou os rostos e as mãos o melhor que pode com a água mineral da garrafa.
Andou se arrastando até a estrada.
Logo a caminhonete barulhenta de Ana Rosa virou a esquina.
- Tudo certo, rapaz? - Indagou a mulher, observando-o entrar no carro.
- Sim. - Disse ele, tentando demonstrar um pouco de ânimo. - Tudo okay.
- Que bom. - Responde ela, já dando partida no carro. - Café preto?
- Quero - aceita Lucas, pegando a embalagem quente do Point Coffee. - Qualquer coisa que tire esse gosto nojento da minha boca serve.
Os dois prosseguiram a viagem em silêncio.
Quando dobraram o quarteirão da Pensão, Lucas suspirou e falou:
- Ana Rosa... Pode me fazer um favor? Preciso arrumar isso o mais rápido possível.

***

- E o Lucas? - Perguntou Lena, enquanto Violeta penteava o cabelo. – Vai ficar por isso mesmo?
- Lucas - diz Violeta, franzindo o lábio. – Ontem ele deve ter saído, as luzes do quarto estavam apagadas. E Ana Rosa saiu sem deixar jantar pra ele, então ela sabia.
Lena franze o cenho.
- Será que ele não foi com ela?
- Não. - Responde Violeta. - Ela voltou sozinha. Não vi que horas ele chegou.
- Que estranho. – Comenta Lena, desviando o olhar.
Violeta desceu para a cozinha.
Ana Rosa estava lendo o jornal, o que era suspeito, já que ela nunca fazia isso.
- Violeta - chamou ela, sem desgrudar os olhos do papel. - Diga para o Lucas vir tomar café.
Violeta achou aquilo estranho também.
- Por que eu? – Indagou.
- Porque eu estou mandando. Não comece a ser infantil.
Violeta revirou os olhos, saindo pela porta aberta da cozinha.
Atravessou o jardim nebuloso e frio pelo sereno matinal.
Bateu na porta do quarto, sem gentileza.

***

Lucas suspirou.
Estava quase perdendo a coragem, mas não podia fraquejar agora.
Quanto antes fizesse aquilo, melhor.
Abriu a porta.
Violeta o encarou, a expressão de desdém sendo substituída pelo choque.
Ela mal disfarçou a surpresa.
Ele estava vestindo um moletom velho, tinha o cabelo molhado depois do banho frio, olheiras e o lábio visivelmente inchado.
- Oi. - Disse ele, engolindo em seco, tragando um cigarro.
- Ana Rosa me pediu pra te chamar para o café. - Disse ela, cruzando os braços. - Não vai pra escola hoje?
- Ah, não. - Disse ele, sem encará-la. - Rolou uma festa ontem. Estou de porre.
Violeta apenas ergueu uma sobrancelha.
Isso explicava aquela boca inchada.
- Desculpe não ter te chamado - continuou ele.
- Eu não iria querer ir. – Revida ela, sem tentar esconder o desprezo. – Boa ressaca.
Ela se virou, mas Lucas a segurou pelo braço antes que pudesse se conter.
- Espera. Está zangada comigo?
- Não. – Diz Violeta, dando de ombros. - Foi legal conhecer você, Lucas. E nos divertimos juntos. Sem mágoas.
Lucas balançou a cabeça.
- Não precisa acabar assim.
Violeta olhou pra ele, e sentiu que poderia chorar. Ele ainda se parecia demais com aquele garoto doce que a havia enchido de promessas e esperanças.
- Precisa, sim. – Disse, afastando o braço, devagar. – Acho que não queremos as mesmas coisas. É melhor não insistir, ou podemos acabar nos magoando.
Lucas a soltou, encarando-a.
- Você está sendo covarde. – Desafiou ele, soprando uma nuvem de fumaça sobre ela.
Violeta cerrou os punhos.
- Não fui eu quem mudou de um dia para o outro. – Disse, furiosa, lhe dando as costas.
Deu alguns passos, parou e voltou a encará-lo.
- E enfia esse cigarro nojento no seu rabo.
Violeta voltou para casa, deixando-o sozinho, plantado na porta, com uma vontade imensa de correr atrás dela.

***

Fernando chegou à escola e atravessou o pátio.
Subiu as escadas quase correndo. Havia se atrasado, graças à falta de sono na noite anterior. Mas um som o deteve.
O som de uma pessoa chorando.
- Eu estou me sentindo uma droga. – Fungou Violeta. – Eu gostava dele. Ele era tão legal, tão doce... Eu sei que acabou, mas me sinto uma idiota. Queria ter o poder de esquecer tudo.
- Esse poder se chama tempo. – Diz Lena, paciente. – É normal ter vontade de chorar. Ele foi o seu primeiro amor. Todo mundo passa por isso.
- Não foi amor. – Diz Violeta, secando as lágrimas. – Eu nunca o amei, porque nem o conheci direito.
As duas estavam sentadas entre os armários e a escada, parcialmente escondidas da vigília dos inspetores.
- O Gibão não vai mais nos deixar entrar na sala. Vamos descer para o banheiro antes que a inspetora apareça, e você pode lavar o rosto e se acalmar.
Violeta concordou com a cabeça.
Na escada, Fernando congelou.
Se elas o vissem ali, saberiam que ele estivera escutando...
- Espera Lena, tem mais uma coisa. – Diz Violeta, de repente. – Eu quero te pedir desculpas.
Lena ergue uma sobrancelha.
- Desculpas? Pra mim?
- É. Bem... As coisas que eu andei fazendo... Percebi que não expõe só a mim. E você prefere ser discreta. Então vou tentar ser mais discreta também.
Lena sorri.
- Nada de ameaçar as pessoas com macumba brava? Quem é você e o que fez com a Violeta?
Violeta ri, pegando a bolsa.
- E quanto ao Fernando? – Indaga Lena. Ele se retraiu ao ouvir o próprio nome. – O que vai fazer se ele continuar te olhando como se nunca tivesse visto uma menina?
- Nada. – Diz Violeta, franzindo o cenho. – Apenas espero que ele e Briana me deixem em paz. O que eu estava pensando? Que ele me olhava daquele jeito porque tinha algum interesse por mim? Foi tudo uma ilusão pura, um tipo de amor platônico imbecil. Eu já deixei isso pra trás. Não pretendo mais sonhar com ele, dormindo ou acordada. E nem acreditar que um dia vai haver alguma coisa entre nós. Eu criei tudo na minha cabeça, e acho que cheguei perto de me apaixonar. Mas eu estava nessa sozinha.
Fernando sentiu as mãos começarem a suar.
Era agora eu nunca.
O coração dele batia tão rápido que martelava nos ouvidos.
Subiu os últimos degraus da escada, de uma vez só, como um vampiro se levantando do caixão.
Lena se assustou.
Violeta quase caiu pra trás.
- Você não está sozinha. - Fernando falou em tom baixo e controlado, com medo da sua voz não sair. – Então... Eu e você, isso é real?

CONTINUA

Comentários

  1. Ohhh, O.O Giovanna não me faça odiar o Lucas! Eu lembro que na primeira vez que li eu fiquei confusa entre os dois, pronto, está acontecendo de novo. Não quero gostar do Fernando :'( pronto, estou confusa. Faz o Fernando fazer uma coisa bem horrorosa? Hahahahha.

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  2. Sorry, te deixar confusa é o objetivo ;)
    kkkkkkkkk

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