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17. Amor Amarrado

“Venha a mim, e fique preso
Pelos poderes da Rainha das Encruzilhadas”
(Simpatia para amarração de amor)

A chuva estava muito forte lá fora, e os sons da tormenta chegavam até o porão.
Ana Rosa desceu as escadas, levando apenas uma vela roxa no castiçal. Ela vestia sua capa ritualística preta e estava apreensiva.
Poucas coisas eram capazes de assustar Ana Rosa Arabella, mas ela nunca havia tentado aquele ritual sozinha.
Se concentrou ao traçar o círculo, cantando rezas quase tão antigas quanto a humanidade.
Se sentou fora dele, derramando vinho e tabaco em seu interior. A velha bruxa iria apreciar a oferenda.
Não demorou muito e a vela foi apagada por um sopro de vento anormal.
Ana Rosa sentiu os pelinhos da nuca se eriçarem quando a visão luminosa da bruxa idosa apareceu, sentada em uma cadeira de balanço e costurando.
- Meus velhos ossos doem nessas noites de tempestade. – Gemeu o espírito da bruxa.
- Eu lhe trouxe vinho e tabaco, vovó. – Disse Ana Rosa, a voz mais clara e firme possível. - Para aquecer seus velhos ossos.
- Por que não me trouxe uma sopa quentinha com pimenta, filhinha?
Ana Rosa já sabia que ela iria fazer aquela pergunta, e tinha a resposta preparada.
- Porque a senhora não tolera pimenta, vovó.
A velha bruxa se inclinou na cadeira de balanço, parecendo satisfeita.
- No que eu posso ajudar a minha filhinha?
- Estou preocupada com nossas meninas, vovó. Elas estão percorrendo um caminho perigoso demais para bruxas tão jovens. Estão misturando magia com amor e se envolvendo com nossos inimigos.
A velha bruxa franziu o cenho.
- Eu entendo, filhinha. Deixe a vovó cuidar delas.
Antes que Ana Rosa pudesse dizer mais alguma coisa, a bruxa ancestral desapareceu em fumaça e poeira.
A vela ascendeu outra vez, e Ana Rosa suspirou, torcendo para não ter cometido um erro.

***

Fernando foi buscar Violeta depois do trabalho, encontrando-a em frente ao shopping.
- Você quer ver um filme hoje a noite? – Perguntou ele.
- Hoje não dá. – Respondeu ela, franzindo o lábio. – Minha tia disse que preciso estar em casa hoje.
- Vão fazer uma poção mágica sob a luz do luar?
Violeta balançou a cabeça e não respondeu, como sempre fazia quando Fernando tocava nesses assuntos.
Ele suspirou, ajeitando a camisa.
- Você ainda é cheia de segredos.
- Eu? – Ela ergueu a cabeça, desafiadora. – Acho que não.
- O que quer dizer? – Pergunta Fernando, tentando parecer despreocupado, mas sentindo o coração acelerar um pouco.
- Você não é exatamente o que eu poderia chamar de um livro aberto. – Violeta dá um meio sorriso cruel. – Você tem os seus segredinhos, e eu tenho os meus.
Mesmo sorrindo para ela, ali, à luz do sol, Fernando sentiu um arrepio.
- Acha que eu escondo alguma coisa de você?
Violeta o encarou demoradamente, se lembrando do garoto solitário e retraído que mal pisava no chão do colégio. Tão arrogante... Ou apenas tímido?
- Eu acho, sim. – Disse ela, tombando a cabeça para o lado e deixando um véu de cabelos castanhos cair sobre o ombro. – Mas faz parte do seu charme. Acho que a nossa forte atração está ligada diretamente com a nossa capacidade de esconder coisas um do outro.
Fernando baixou o olhar para os lábios dela.
Ela era sexy de um jeito que ele nunca havia visto outra garota ser.
Ele queria beijá-la e mais.
- Vamos para a minha casa. – Decidiu ele.

***

Lena estava atrasada, então apertou o passo, quase correndo.
Pensou, com sarcasmo, que estava muito fora de forma para alguém que trabalhava em uma academia.
Assim que entrou, cumprimentando vagamente as pessoas que estavam malhando, colocou a camiseta da academia por cima do top e foi atrás de uma garrafa de água gelada.
Jaime não estava a vista.
Fechou a geladeira e já estava saindo da cozinha dos funcionários quando escutou vozes vindo do almoxarifado.
- Edna, nós já conversamos sobre isso. – Era a voz de Jaime. – Eu estou com a Lena. Eu amo a Lena.
Ela escutou algo parecido com um choramingo.
- Mas Jaime, nós estávamos indo tão bem... E de um dia para o outro você apareceu com ela, como se eu nunca houvesse existido. Eu sei que já faz meses, mas eu preciso de uma explicação.
Jaime deu um suspiro, impaciente.
- A única explicação é que eu me apaixonei pela Lena e é com ela que eu quero ficar. Sinto muito se eu magoei você, mas não foi algo que eu pudesse controlar.
- Exatamente! – A voz de Edna soou estranhamente aguda. – Hoje a Briana me disse uma coisa que me fez pensar... Se Violeta enfeitiçou Fernando para ficar com ele, Lena pode ter feito a mesma coisa com você!
Ela escutou Jaime dar uma risada sem humor.
- Olha, Edna, eu sei que a Violeta ameaça fazer macumba pra todo mundo, mas você não pode estar realmente levando isso a sério. Agora, se me der licença, eu tenho que voltar ao trabalho e você não deveria estar aqui.
A porta se abriu e Jaime deu de cara com Lena.
- Oi! – Exclamou ele, surpreso.
Lena não disse nada. Apertava com tanta força a garrafa de água que seus dedos doíam.
Edna saiu atrás de Jaime, com os olhos inchados.
- Lena, só estávamos conversando. Eu juro. Vou te contar tudo.
Se eu não tivesse escutado a conversa toda, iria querer matá-lo, conclui Lena, ainda sem conseguir dizer uma palavra.
Edna fungou.
- Eu sei a verdade. Você não vai conseguir envenená-lo de novo!
Lena fechou os olhos, tentando se conter.
Se sentia como uma bomba relógio prestes a explodir.
- Lena, vem cá...
A garrafa de plástico estourou, e a água atingiu todo o chão da cozinha.
Edna gritou, ao mesmo tempo em que as luzes piscaram.
Lena saiu em um passo apressado, e Jaime correu atrás dela assim que se recuperou do choque.
- Lena, espera, não vai embora assim...
Ele a alcançou na rua.
- Você acha mesmo que eu estava com a Edna? Ela me arrastou pro almoxarifado e começou a falar um monte de bobagens. Por favor, me escuta...
Lena se voltou para ele, impassível.
- Isso não faz mais diferença, Jaime. Por favor, pare de me seguir.
Jaime passou a mão na cabeça, confuso.
- Mas você não pode ir embora. – Tentou ele, desesperado. - Não pode me deixar sozinho na academia.
- Então eu me demito.
- Não pode estar falando sério!
Ela suspirou, lançando um olhar triste pra ele.
- Não faz mais diferença, Jaime. Eu sabia que não poderia durar para sempre.
- Do que você está falando?
- Não tem importância. Você logo não vai se lembrar mais de nós.
Lena foi embora, deixando Jaime gritando o seu nome.
Seu coração estava partido, mas ela se recusou a derramar uma lágrima que fosse.

***

O quarto de Fernando tinha o cheiro dele, constatou Violeta, ao levar o edredom azul marinho até o rosto. A guitarra estava pendurada na parede, e havia uma estante cheia de livros que ela pegaria emprestados.
Ela passou os dedos pela escrivaninha aonde estava o computador e alguns livros de escola.
Um caderno com  capa de couro chamou sua atenção.
Ela começou a folheá-lo, sem grande interesse, quando teve a impressão de ter lido o seu nome.
Não pode voltar algumas páginas para conferir, porque Fernando tirou o caderno das mãos dela, com cuidado, colocando-o de volta na mesa e abraçando-a pela cintura.
- Alguma coisa de interessante?
- Não. Deveria?
- Não. – Ele lhe deu um beijo na bochecha. – Achei refrigerante e um pedaço de torta de limão na geladeira. Quer alguma coisa?
- Você disse torta? – Riu ela. – Depois, talvez.
Fernando segurou a mão dela e começou a beijá-la. Ele sentia como se nunca mais fosse conseguir parar. Não queria parar.
Era recíproco. Violeta queria que eles fossem além. Dessa vez as lembranças de Lucas estavam enterradas bem fundas, não iriam atrapalhar.
A cama dele era macia, e o peso do seu corpo sobre o dela a deixava sem ar, mas de um jeito bom.
-  Que bom que eu encontrei você.- Disse ele.
Sim. Violeta sorriu, sentindo os lábios e a respiração dele em seu pescoço.
Lucky, a música de Jason Mraz com Colbie Caillat, tocava no celular dele.

“Boy I hear you in my dreams
I feel you whisper across the sea
I keep you with me in my heart
You make it easier when life gets hard”

(Garoto, eu ouço você em meus sonhos 
Eu sinto você  sussurrar do outro lado do mar
Eu guardo você comigo em meu coração
Você torna as coisas fáceis quando a vida fica difícil)

Foi tudo muito simples e completo.
Violeta o abraçou, sentindo-se tranquila, segura e feliz como nunca havia estado antes. Fernando enterrou o nariz no cabelo dela, desejando ficar ali para sempre.
Os dois não disseram nada por um longo tempo.


- Fernando! – Violeta sussurrou, tentando sacudi-lo.
Ele abriu os olhos, ainda sonolento.
- Hey – sorriu ele, passando a mão no rosto dela. – Acho que eu acabei dormindo, não foi?
- Eu dormi também. – Disse ela, sentindo o rosto ficar vermelho. – Mas escutei um barulho.
Nessa hora os dois ouviram a porta da frente bater, e uma voz masculina chamou o nome de Fernando.
- É o meu pai.
Violeta começou a se vestir, apressada, mas Fernando continuou imóvel.
- O que você está fazendo? – Sussurrou ela. – Vista-se!
Ele sorriu.
- Eu nunca me imaginei nessa situação antes. E ver você nessas condições é muito... Interessante. Poderia se vestir mais devagar, por favor?
Violeta jogou uma camiseta no rosto de Fernando, e ele acabou cedendo.
Colocou a cueca e a camiseta, quando escutou seu pai bater na porta.
- Já vou!
Violeta arregalou os olhos.
Fernando a puxou para a cama, escondendo-a com o edredom.
- Fernando, está tudo bem? – Chamou Edgar.
O garoto suspirou, abrindo a porta.
- Oi, pai.
Edgar examinou o filho com os olhos, depois lançou um olhar desconfiado pelo quarto.
- Você está vermelho – ele colocou a mão na testa e bochechas do garoto. – E quente. Está com febre?
- Não sei. Eu estava dormindo.
- Dormindo? – Edgar ergueu uma sobrancelha. – Essa casa está um completo caos. Deveria cumprir com as suas obrigações primeiro.
- Eu estava me sentindo cansado. Desculpe.
Edgar suspirou.
- Vou lavar a roupa. Me dê as suas roupas escuras.
Fernando assentiu e começou a recolher as peças espalhadas pelo quarto o mais rapidamente que conseguia.
- Fernando?
- Hmm?
- Aquilo são botas?
- Ahn...
Edgar entrou no quarto e pegou as botas de Violeta, que estavam parcialmente escondidas embaixo da cama.
- São. – Respondeu Fernando, ficando de costas para o pai enquanto apanhava algumas meias no chão.
- Quer me explicar porque tem um par de botas femininas no seu quarto?
Fernando encarou o pai.
- São do Kenji.
- Do Kenji?
- É. Ele quer fazer uma surpresa para a namorada dele.
- Não sabia que o Kenji tinha namorada.
- Ele está namorando com a Giulia. É bem recente.
Edgar olhou mais uma vez para as botas.
- Parecem usadas.
- Ele comprou no brechó em cima do Point Coffee. Deixou aqui porque vai mandar engraxá-las antes de dar pra ela.
Fernando nunca havia mentido para o pai antes. Se surpreendeu com a própria naturalidade.
Edgar deu de ombros, dando-se por vencido.
Fernando lhe entrgou as roupas sujas, e esperou o pai se afastar para puxar as cobertas.
- Ele já foi. – Sussurrou.
Violeta o encarou, suando, com a franja grudada na testa.
- Você é um ótimo mentiroso.
- Eu não sei porque escondi você. Deveria apenas ter vestido uma calça e apresentado os dois de uma vez.
Violeta balançou a cabeça negativamente.
- Não. Seria constrangedor demais.
Fernando concordou, e ficou vigiando enquanto ela calçava as botas.
Os dois desceram em silêncio e saíram pela porta da frente. Fernando conseguia ouvir o pai na lavanderia, nos fundos da casa, falando no celular.
- Eu só queria dizer que foi tudo incrível. – Disse ele, segurando as mãos dela. – E eu não queria que acabasse desse jeito embaraçoso.
- Está tudo bem. – Sorriu Violeta. – Eu gostei. De verdade. E o desfecho teve um pouco de adrenalina.
- Se você esperar um pouco, vou inventar alguma desculpa e te levo até a sua casa.
- Não precisa. Ana Rosa já deve estar uma fera comigo. Estou mais do que atrasada.
Fernando a beijou.
- Eu vou te ligar mais tarde.
- Talvez eu não atenda. – Sorriu ela. – Mas nada pessoal, tenho algumas coisas para resolver.

***

Violeta pensou em mil desculpas no caminho até em casa, mas, quando chegou, a caminhonete de Ana Rosa não estava lá.
Entrou, aliviada, fechando a porta da sala.
Subiu até o quarto e encontrou Lena deitada na cama.
- Lena?
- Oi.
- Cadê a Ana Rosa?
- Eu não sei.
Violeta soltou a bolsa.
- Estranho. Ela disse que precisávamos estar em casa cedo hoje.
- Aonde você estava?
Violeta sorriu, enquanto tirava as botas e as meias.
- Na casa do Fernando. – Ela fez uma pausa. – Nós... Fizemos.
Lena deu uma risada rouca.
- Usaram camisinha, né?
- Claro!
Lena tossiu, e Violeta a olhou, desconfiada, esquecendo um pouco da própria empolgação.
- Você está bem?
- Não exatamente.
Um pressentimento ruim invadiu Violeta até a raiz dos cabelos. Ela foi até o interruptor e ascendeu a luz.
Lena estava trêmula, com os olhos fundos e as mãos manchadas de sangue.
O coração de Violeta batia nas costelas.
- Lena, o que aconteceu?
- Eu quebrei o feitiço, Violeta.
- Que feitiço?
Lena fungou.
- O de amarração de amor. Que fazia o Jaime me amar.
Violeta arregalou os olhos.
- Amarração de amor?! Você está brincando comigo, não está?
Mas antes que Lena respondesse, todas as luzes da casa se apagaram.
Após alguns segundos de silêncio, alguém bateu na porta.


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