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11. Ela não é uma Dama


“Finalmente caiu em si.
E foi em queda livre.”
(Clarice Freire)

Na manhã seguinte, Violeta e Lena saíram juntas para ir ao colégio, como sempre.
Mas, como nunca, havia dois garotos parados em frente ao portão.
O coração de Violeta ficou alerta ao ver Lucas: o uniforme do Colégio, que sempre lhe parecera tão formal e sério, nele tinha um aspecto descolado e moderno. Talvez fosse a forma como ele estava amarrotado.
Ele e Jaime haviam trocado comprimentos, um pouco constrangidos, e esperavam em silêncio pelas meninas.
- Seu amor está esperando por você. – Provoca Lena.
- Ao menos o “meu amor” não parece um cachorrinho, como o seu Jaime. – Devolve Violeta.
- Não. – Concorda Lena, cheia de malícia. - O seu é mais como um lobo selvagem.
Lena deu o braço para Jaime e apressou o passo, caminhando na frente para que Violeta e Lucas pudessem conversar com mais privacidade.
Lucas a beijou no rosto e pegou a mão dela.
- Vamos?
- Vamos.
Os dois começaram a descer a rua, na direção do colégio, em silêncio.
Pela primeira vez, Violeta se sentia estranha na presença dele. Lucas parecia distante.
Indignada, ela começou a desconfiar de que ele se sentia obrigado a acompanhá-la até o colégio, como se fossem um casal. Ana Rosa teria dito alguma coisa?
Ela parou, de repente.
- Não precisamos fazer isso.
Ele a olhou, surpreso.
- Como?
- Não precisamos ficar juntos no Colégio.
Ele franze a testa, abrindo um meio sorriso pouco convincente.
- Ora, Violeta. Está com vergonha de mim?
Ela ri.
- Não seja absurdo. Nós estamos saindo e nos dando super bem, e eu estou gostando de te conhecer... Mas o colégio é como se fosse uma espécie de mundo paralelo. As pessoas são fofoqueiras e maldosas.
Lucas sorri, compreendendo.
- Eu gosto do seu jeito de pensar, porque sei pensar como você.
- Isso não é exclusivo de você. É uma característica humana.
Os dois conversaram mais um pouco até chegarem diante do colégio, e Lucas deu um beijo nela.
- Bom, nos esbarramos por aí.
- Estudando no meso colégio e morando na mesma pensão, isso se torna quase inevitável.


***

Fernando chegou ao colégio no horário de sempre naquela manhã, mas não entrou logo, como normalmente fazia.
Ele queria respirar mais um pouco do ar fresco da manhã antes de entrar e ser sufocado pelo abraço perfumado de Briana.
Ele acabaria com aquele lance hoje mesmo.
Seria um pouco assustador, mas nada extraordinário: Briana era muito fácil de prever.
Ele teria que se concentrar no seu plano. Kenji o apoiava. Ele tentaria se aproximar de Violeta. Ainda não sabia como, mas daria um jeito.
Afinal, ele conhecia quase todo mundo.
O problema seria justamente pensar em um jeito dela permitir que ele se aproximasse sem desconfiar. Ultimamente, ele parecia invisível aos olhos dela.
Seja o que fosse que conectava os olhares dos dois, parecia ter morrido. E isso, no íntimo, o fazia se sentir mal.
Viu os amigos de Violeta chegarem, mas ela não estava com eles. Talvez não fosse vir hoje. Talvez fosse uma oportunidade, ele poderia se aproximar dos amigos dela primeiro, e então...
Ele a viu.
Do outro lado da rua.
Ela ria e segurava a mão de um garoto estranho, e quando ele a beijou, o estômago de Fernando ficou ácido como se ele estivesse tomado um gole de algum produto corrosivo, deixando-o pregado na calçada.
Ele está deslizando as mãos pelo cabelo dela, agora eles estão rindo, e depois vão se beijar outra vez...
Sabia que não deveria ficar ali. Não queria olhar.
Porque sua mente já estava divagando.
Ele desliza as mãos pelos braços dela, livrando-a da jaqueta do uniforme. Depois a beija no pescoço, abaixo da orelha...
Ele definitivamente deveria sair dali e parar de imaginar aquela cena. Agora.
Agora ela sorri, e ele a livra das botas. O perfume dela é irresistível. Ele então desenrola calmamente as meias pelas pernas dela...
Fernando deu as costas aos dois, com um sentimento próximo da humilhação.
Não era pra ser assim.

***

Lucas apenas queria que o tempo passasse logo.
As aulas terminassem, e ele pudesse ficar ao lado de Violeta de novo.
A professora de português explicava a matéria com ênfase, repetindo a todo mundo que o assunto seria o principal das provas do trimestre.
Mas Lucas apenas se contentou em olhar para o relógio na parede da sala, contando os minutos que faltavam para o intervalo.
Ele se conhecia bem o suficiente para saber que seus sentidos ficariam alerta na presença de Violeta. E bastaria um sorriso discreto dela, uma piscada, e ele sentiria a sensação estonteante de ter o carinho dela em segredo, sem que ninguém ao redor desconfiasse...
Começou a batucar as pontas dos dedos na carteira.
Foi quando notou.
Suas unhas... Estavam maiores. Muito mais compridas do que estavam pela manhã. Definitivamente elas não estavam daquele jeito pela manhã.
Um calafrio percorreu sua espinha.
Lucas imediatamente puxou as mangas do suéter, escondendo as mãos e as unhas desconcertantemente grandes.
Dentro dele, o monstro sorriu.

***

Ana Rosa se sentou no centro do jardim, cercada por suas amadas rosas, aspirando o ar do silêncio.
Cruzou as pernas e acertou a postura, ereta, como uma praticante de ioga.
Mas aquilo não era ioga.
Ergueu a cabeça, fechando os olhos.
Levou o chá de erva doce até os lábios, concentrando-se em todos os sentidos.
Ela precisava de respostas.
Agora.

***

Lena e Violeta se sentaram juntas em um dos bancos do pátio externo. Estavam de aula vaga.
Enquanto Violeta revira a playlist do celular, conectada aos fones de ouvido, Lena rabiscava em um caderno, distraída.
- Você está muito quieta hoje. – Observa Violeta.
- Estou? – Indaga Lena, sem encará-la.
- O que foi, L? Nenhuma resposta ácida? Você está com febre?
Lena sorri.
- Não. Apenas com fome. Já está na hora do intervalo. Vamos comer.
Violeta pega os cadernos das duas.
- Vou levar isso pra sala. Vai procurar o Jaime.
Os alunos já estavam descendo para o pátio, e o sinal que anunciava o intervalo ressoou pelas paredes.
Era difícil abrir caminho pela escada, quando ela mesma estava na contra-mão.
Violeta estava quase desistindo quando uma mão tocou o seu ombro.
- Deixa eu te ajudar.
Ela prendeu a respiração.
Era Fernando, que calmamente passou por ela, abrindo caminho no meio da multidão. Violeta o seguiu, colada nos calcanhares dele.
Ele era alto, ali no meio, e a maioria das pessoas que desciam a escada parava para cumprimentá-lo.
Eles chegaram ao topo da escada, diante do corredor de salas de aula, e Violeta achou que ele apenas seguiria o caminho dele sem ao menos olhar pra trás.
Mas, para a surpresa dela, Fernando parou e sorriu.
- Muita aglomeração, não é?
Violeta deu de ombros, baixando os olhos.
Não estava sendo muito educada, mas ainda guardava mágoa dele.
- Eu levo pra você. – Diz ele, tentando pegar os cadernos dela.
Mas Violeta os puxou quase violentamente.
- Não, obrigada. – Disse, se esforçando para não trincar os dentes. - Eu posso me virar muito bem sozinha.
Ele piscou, confuso.
- Eu só estava tentando ser um cavalheiro...
- Não perca o seu tempo. – Ela dá um sorriso arrogante. – Eu não sou uma dama.
Com essas palavras, ela passou por ele, decidida.
Fernando a viu virar o corredor e suspirou, desanimado.
Aquilo iria ser muito mais difícil do que ele imaginava.

***

Violeta desceu depois de deixar os cadernos na sala, e encontrou Jaime e Lena no refeitório, dividindo um cachorro quente.
Seus olhos varreram o pátio, mas não havia sinal de Lucas em lugar algum.
Ela cutucou Lena e contou sobre o estranho comportamento de Fernando.
- Não é tão estranho assim. – Lena sorri, cheia de malícia. - Devia ter visto a cara dele quando viu você beijar o Lucas hoje de manhã.
Violeta a olha, incrédula.
- Ele... Viu a gente?
- Eu achei que ele tentaria partir o Lucas no meio. – Observa Jaime, falando com a boca cheia. – Sério, Vi. Acho que ele ficou com ciúmes.
- Violeta, onde você vai? – Gritou Lena.
Violeta havia se levantado e se afastado com pressa.
Abriu caminho pelo refeitório, parecendo um furacão, esbarrando em quem estivesse no caminho.
Viu Fernando próximo à entrada do banheiro masculino, bebendo água em um dos bebedouros.
Ela o cutucou, impaciente.
Fernando se virou e quase engasgou.
- Eu não sei que tipo de joguinho estúpido você está fazendo, seu crápula – cuspiu ela, mal podendo conter a raiva. – Mas eu estou cansada, entendeu? Se me incomodar de novo eu vou esfarelar o seus ossos e fazer uma fogueira com eles na encruzilhada!
Fernando a encarou, boquiaberto.
- Eu não sei...
- Ah, você sabe sim! – Irrompeu Violeta. – Não sei se foi ideia sua ou da sua namorada Briana zombar de mim dessa maneira, mas eu estou avisando: ninguém zoa com a minha cara e saí ileso, entendeu?
Fernando cruza os braços, sustentando o olhar dela.
- É mesmo? E o que exatamente eu fiz pra você?
- Apenas fique longe de mim. – Cospe Violeta, segurando-o pelo colarinho e colocando-o contra a parede. – Longe de mim. Porque se eu perceber você com alguma gracinha mais uma vez, se eu notar um único olhar seu na minha direção, eu vou...
- O que? – Provoca Fernando.
Por mais estranho que fosse, ele estava começando a gostar daquilo. Ela estava furiosa, e a raiva deixava o seu rosto vermelho e os olhos castanhos brilhando. Ela estava tão próxima dele que ele poderia beijá-la...
Pareceu que o mesmo pensamento ocorreu a ela, porque o olhar de Violeta vacilou por um instante e desceu até os lábios dele.
- Eu vou foder com a sua vida. – Diz ela, em fim. – Você não imagina as coisas das quais eu sou capaz...
Fernando queria continuar provocando-a, mas passos vindos do banheiro a fizeram se afastar.
Violeta estava pronta para sair de nariz empinado, mas teve uma ideia melhor quando viu Lucas saindo do banheiro, secando as mãos na blusa.
Ele a viu e sorriu pra ela.
Violeta foi até ele e o beijou. Lucas ficou surpreso, mas correspondeu ao beijo.
E quando a inspetora apareceu, aos berros, ordenando que eles se afastassem imediatamente ou levariam uma advertência, Fernando já não estava mais lá.


***

Espíritos ancestrais, por que não me respondem?
Ana Rosa inspirou e expirou mais uma vez.
E quando estava quase desistindo, as imagens começaram a chegar, diretamente em sua cabeça.
A maioria, claro, a bruxa extraordinária já previa.
Mas então ela teve detalhes.
E seus temores começaram a se confirmar.
Ah, minhas meninas... Lena... Violeta... Ah, Violeta...
E então ela arregalou os olhos, arfante.
Já era tarde demais para interferir.
O destino já havia armado tudo.

***

Depois do colégio, Violeta seguiu com Lucas para casa.
Os dois conversavam e riam juntos, Violeta se divertindo como nunca nos últimos tempos, mas Lucas estava meio preocupado.
Ele sabia que cedo ou tarde a lua cheia chegaria.
E se Ana Rosa não contasse nada a ela, ele teria que dizer.
Lucas foi até o quarto deixar a mochila antes de ir almoçar, e Violeta o seguiu.
Queria beijá-lo até esquecer todos os problemas. Queria beijá-lo para que o rosto de Fernando sumisse da sua cabeça.
- Você está diferente – comenta Lucas, parando de beijá-la para olhá-la nos olhos.
- Diferente como? – Pergunta ela, alinhando a gola da jaqueta dele.
- Eu não sei... – Admite Lucas.
Mas ele sabia que alguma coisa tinha mudado. O jeito que Violeta o estava beijando desde que se encontraram no colégio não era normal.
Era como se ela estivesse ávida, quase faminta...
Aquele pensamento o fez ter ideias um pouco atrevidas.
Violeta continuava a beijá-lo, apertando-o contra si, os dedos se enroscando no cabelo dele.
Lucas a acompanhava, abraçando-a pela cintura, beijando-a, acariciando a pele macia...
- Ai, Lucas! – Gritou ela, de repente. – Você me arranhou!
Violeta ergue a camiseta, tentando examinar o próprio torso.
Lucas congelou quando viu as marcas de unhas nas costas dela. Os cortes finos e superficiais eram longos e vermelhos em contraste com a pele branca.
Ele a havia machucado.
O horror e a vergonha fizeram com que ele tivesse vontade de correr e se esconder.
- Meu Deus, Violeta... Me desculpe. – balbuciou ele. – Eu não queria...
- Tudo bem. – Diz ela, o olhando com desconfiança. – Eu preciso ir... Tenho que me arrumar pro trabalho. Te vejo mais tarde.
Ela pegou a própria mochila e saiu para o jardim.
Lucas se sentou na cama, afundando o rosto nas mãos.
Ele havia se comportado como um animal.
E nem era lua cheia ainda.

CONTINUA

Comentários

  1. Ela não vai ficar brava com ele né?!
    E me diz, o que Ana Rosa viu?! Aaaaaaahhh! To ficando muuuito curiosa!

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