“Monstros são reais e fantasmas são
reais também. Vivem dentro de nós e,
às vezes, vencem.”
(Stephen King)
Ana Rosa Arabella encostou a
caminhonete na mesma encruzilhada da véspera, sob os primeiros raios de sol da
manhã.
Lucas já estava lá, terminando de se
vestir com as roupas que havia trazido na mochila.
Estava ofegante e com o rosto um
pouco arranhado, e havia sangue seco nas mãos e na boca dele.
Ana Rosa percebeu com tristeza o
quanto ele parecia abatido. Se aproximou e ofereceu uma garrafa de água mineral
gelada.
- Pegue. Beba e se lave.
Lucas aceitou sem dizer nada,
despejando a água fria sobre a testa suada e o cabelo embaraçado.
- Onde você acordou? – Perguntou Ana
Rosa, olhando em volta.
- No meio da trilha, como você
disse. – Respondeu o garoto, com ar cansado.
A mulher o encarou.
- Viu? As coisas estão dando certo,
guri. Sei que é difícil, mas você está conseguindo. Não machucou ninguém, e
isso é importante...
- Mas também não tenho controle
nenhum – sussurrou Lucas. – Não me lembro de nada. Ou melhor, lembro de estar fora
de controle. É tão... Monstruoso. Não como um animal caçando, mas como uma fera
de verdade... Faminta e louca, com vontade de matar...
Ana Rosa coloca as mãos na cintura.
- É por isso se chama maldição.
Vamos para casa.
***
Violeta foi até o Parque Municipal com Jaime e Lena naquela tarde de sábado.
O dia estava nublado e um pouco
frio, mas eles não se importavam. Jaime queria andar de skate, Lena queria sair
um pouco de casa. E Violeta apenas queria ficar sozinha com um bom livro.
- Quando você vai ter um namorado
para sair com a gente? - Provoca Jaime.
Violeta finge incredulidade.
- Como assim? Esse é o meu namorado. – Diz, erguendo um volume gasto de Orgulho e Preconceito. – Cumprimente o
Sr. Darcy.
Jaime olha para Lena.
- Ela sabe que eu não faço ideia de
quem é esse cara, não sabe?
Lena franze o cenho.
- É claro que ela sabe, Jaime. Você
já disse um milhão de vezes que nunca leria um livro que não tivesse figuras.
- Ah, Jaime – sorri Violeta. –
Sempre me lembro de você quando chegam livros infantis lá na livraria. Ou de
zumbis.
- É. Eu adoro zumbis. – Concorda
ele.
- Vocês dois são clichês. – Acusa
Lena. – Zumbis ainda são menos carne de vaca do que vampiros, mas, francamente,
Violeta, Sr. Darcy? Ele é o príncipe encantado de 10 a cada 11 meninas que já
tenham lido Jane Austen.
Violeta balança a cabeça, sem se
abalar.
- Viu só? E mesmo assim ele me escolheu...
Lena revirou os olhos.
Ela e Jaime foram para a pista de
skate, e Violeta foi para o outro lado do parque, se acomodar com o livro
embaixo de uma árvore.
***
Lucas apenas se atreveu a entrar na cozinha da Pensão porque sabia que não havia ninguém em casa.
Durante a época de lua cheia, seus
sentidos ficavam dez vezes mais aguçados.
Ele já tomara uma ducha e dormira
por algumas horas, mas agora estava mais enérgico do que nunca.
Essa é a única
coisa boa em toda essa porcaria.
Durante os dias, a agonia e o medo
davam lugar àquela disposição, aquele instinto enérgico e poderoso que só as
feras tinham.
Lucas abriu a geladeira. Não haviam
muitas opções. Encheu um copo com um suco verde estranho. Abriu um pacote de
biscoitos que achou no armário.
Se sentou na mesa e comeu mais rápido
do que o aconselhável. Ia sair, quando viu um cachecol pendurado em uma das
cadeiras.
Passou os dedos pela lã azul e roxa,
distraído.
Lucas não saberia dizer o motivo,
mas pegou o cachecol e o enrolou no próprio pescoço.
E então um cheiro atormentadoramente
adorável encheu suas narinas.
Era um cheiro diferente.
Doce e cítrico. Puro. Tentador.
O monstro se remexeu dentro dele, um
pouco agoniado.
Aquele cheiro era uma tentação...
Mas, ao mesmo tempo, não era
exatamente o cheiro de algo para se comer
(apesar de que o monstro provavelmente comeria, porque o monstro come de tudo,
até ratos mortos). Era apenas um cheiro assustadoramente atraente.
Lucas saiu com o cachecol. Estava
esfriando.
Ele colocaria no lugar depois, e
ninguém iria perceber.
Decidiu pegar seu velho skate e ir
gastar a energia no parque antes que anoitecesse.
Afinal, naquela noite o monstro
ficaria trancafiado, e não correndo solto por aí.
A coisa dentro dele rosnou,
provocada.
Mas Lucas apenas sorriu enquanto
atravessava o jardim de rosas da Pensão Arabella.
***
"A vaidade e o orgulho são coisas diferentes, embora as palavras sejam frequentemente usadas como sinônimos. Uma pessoa pode ser orgulhosa sem ser vaidosa. O orgulho relaciona-se mais com a opinião que temos de nós mesmos, e a vaidade, com o que desejaríamos que os outros pensassem de nós."
Ploc!
Violeta teve seu momento literário
interrompido por um pingo de água que a acertou na cabeça.
Olhou para o céu.
As nuvens negras estavam se
acumulando acima dela, anunciando a tempestade que estava por vir.
Com um suspiro resignado, Violeta
guardou o livro na bolsa e se levantou. Ela não tinha guarda-chuva.
Violeta fechou os olhos e abriu os
braços, com um sorriso ameaçando seu rosto.
Ah, chuva... O
suor do sol, o choro da lua.
Toda a natureza parecia celebrar
aquela água do céu, e tudo ficava mais verde e exuberante.
Violeta não entendia como as pessoas
podiam se esconder e evitar uma coisa tão pura, purificadora. Ela recebia a chuva de bom grado,
aceitava aquela água bendita em sua pele, assim como as árvores.
Quando achou que já era o
suficiente, puxou o capuz da jaqueta vermelha e saiu para encontrar os amigos.
Foi quando uma rajada de vento a
atingiu, fazendo seu cabelo esvoaçar e arrepios percorrem cada centímetro do
seu corpo.
E ela não soube dizer se era por
causa da temperatura caindo.
***
O perfume...
Lucas se retraiu, olhando em volta.
Estava quase indo embora, já que
pelo jeito o céu ia desabar. Mas quando o vento soprou ele pode sentir, mesmo
que de leve, o mesmo cheiro intrigante de antes.
O mesmo cheiro do cachecol.
O que podia ser aquilo?
Tentando não pensar no quanto aquele
comportamento lembrava um animal, começou a seguir o inebriante cheiro.
***
- Jaime! Vamos embora! – Gritou Lena, impaciente. – Vamos ficar encharcados desse jeito.
- Só um minuto – pede Jaime, subindo
no topo da pista. – Eu já vou descer.
- É muito alto aí – adverte Lena,
preocupada. – Tome cuidado... A pista já está toda molhada!
- Relaxa! – Grita Jaime,
posicionando o skate e preparando-se para saltar.
Porém, com a chuva cada vez mais
forte e o perigo apontado por Lena da pista molhada, ele acabou escorregando e
perdendo o equilíbrio.
Jaime fechou os olhos, sem ao menos
conseguir gritar, pronto para despencar três metros e cair de cabeça no
concreto.
***
Sou tão ridícula que consegui me perder.
Violeta sobressaltou-se ao se dar
conta de que não sabia onde estava.
O caminho para os portões, onde
Jaime e Lena provavelmente a esperavam, consistia em apenas contornar o lago,
mas depois de toda aquela água, parte do caminho estava tão enlameado que Violeta
teve que cortar caminho pelas árvores, atravessando o playground.
A chuva estava aumentando, e já não
havia mais ninguém a vista.
Sem saber o motivo, sentiu um
calafrio.
No começo, a chuva estava agradável,
mas, conforme avançava, seus tênis All Star iam ficando ensopados e pesados,
dificultando seus passos.
A franja molhada também não ajudava,
escorrendo sobre os seus olhos.
E Violeta andava apressada por entre
as árvores, procurando a saída mais próxima do parque.
Puxou ainda mais o capuz vermelho
sobre a cabeça.
E de repente, a paranoia atacou.
Tem alguém me
seguindo.
Parou e olhou para trás, só que não
viu ninguém.
Nada se mexia além dos galhos das
árvores, sacudindo com o vento.
Estou ficando
histérica.
Mas aquela sensação estranha não a
abandonou.
***
O impacto que Jaime esperava não veio.
Quando ele criou coragem para abrir
os olhos, estava deitado na grama, com um pouco de lama no rosto, a pelo menos
cinco metros de distância da pista de skate.
Olhou para Lena, que havia corrido
para ele.
- Seu louco! – Gritou ela,
abraçando-o. – Perdeu o juízo? Você podia ter se quebrado todo, Jaime!
Jaime a olhou, atônito.
- Eu sei! Como... Como eu vim parar
aqui?!
Lena apertou os lábios.
- Você escorregou. – Disse, ajudando-o
a se levantar. – Vamos. Você está coberto de terra.
- Lena... – Começou Jaime.
Mas a garota apenas balançou a
cabeça, puxando-o pela mão. Ele não conseguiria arrancar nada dela, não hoje.
***
Violeta começou a correr.
Dane-se se estou
sendo idiota... Eu só quero ir pra casa.
Agora ela tinha a nítida impressão
de que alguém corria atrás dela, mas não se atrevia a olhar.
Já estava bem perto dos portões,
quando uma mão segurou o ombro dela.
Violeta girou, batendo na mão que a
tocava.
- Fique longe de mim!
Lena a olhou, espantada.
- Tá bom, né.
Ela e Jaime se entreolharam.
Violeta suspirou, aliviada.
- Que sustou vocês me deram...
- Achou que era algum tarado do
parque? – Pergunta Jaime.
- Não. Achei que fosse o atirador da
Ana Rosa.
Lena ri.
- Não seja burra, Violeta. Atiradores não seguram ninguém pelo braço. Eles só atiram. Vamos embora.
Os três se dirigiram para os
portões. A chuva já estava perdendo força.
- O que houve contigo, Jaime? –
Pergunta Violeta, recuperando a serenidade. – Deve ter lama até nas suas
cuecas. Se isso for mesmo lama.
- Obrigado pela observação, Vi. –
Diz ele. – Eu escorreguei da pista... Só não sei como fui parar no gramado.
Ele olhou para Lena, mas a garota
apenas fez um estalo com a língua.
- A verdade é que ele quase se
matou. – Cuspiu ela. – E você, Violeta? Porque está tão assustada? Não é você
que ama chuva?
- Eu amo a chuva. Mas não quando ela
tenta me afogar.
- Ela está uma gracinha de
Chapeuzinho Vermelho. – Zomba Jaime.
Lena a encara.
- Os lobos caem matando, não é?
Violeta sorri, embora aquela frase
de Lena fosse um tanto perturbadora.
- De onde você tirou essa?
- Não sei. – Diz Lena, com
franqueza. – Apenas veio na minha cabeça de repente.
Violeta não disse mais nada.
***
Eu a perdi.
Lucas estava quase triste.
Por um momento esperava encontrar o
que quer que fosse que trazia aquele cheiro estranhamente maravilhoso.
E teve um deslumbre de alguém
correndo por entre as árvores, usando roupa vermelha... Mas então a chuva ficou
mais forte, o vento mudou de direção e ele perdeu o rastro que ficara no ar.
E ele teve uma sensação estranha...
Não era tristeza, apenas perda. Como água escapando entre os dedos...
Foi então que ele percebeu.
A verdade foi um golpe duro, que o
fez abominar a si mesmo.
Ele estivera caçando alguém pelo parque.
***
Naquela noite, quando Lena já estava
dormindo, Violeta desceu até a cozinha e preparou um chá de camomila.
A bebida quente e doce a fazia se
sentir mais calma.
Olhou pela janela da cozinha, e viu
uma luz acessa no quartinho dos fundos. Só então se lembrou do hóspede
misterioso de Ana Rosa, que ela ainda não conhecia.
Aquilo sim, era um bocado estranho.
Pensou em ir até lá e oferecer uma
xícara de chá.
Mas logo abandonou a ideia.
Era uma grande idiotice bater na
porta de um estranho no meio da noite.
Uma grande idiotice, mesmo que ela
de repente se sentisse muito curiosa.
Com um suspiro, apagou a luz e subiu
para o quarto, se perguntando se alguém no mundo se sentia tão solitário quanto
ela.
***
Lucas, com os braços presos em
correntes e totalmente nu, estava trancado no pequeno e escuro cômodo.
A luz do banheiro, que ele deixara
acesa, mal chegava ali, mas ele precisava dela. Era aquela lâmpada fraca sua
única proteção contra os demônios.
A meia-noite chegou.
A já conhecida dor o invadiu.
Insuportável. Queimando por dentro.
Urrando, ele caiu no chão, se
curvando.
Primeiro, eram os ossos.
Se deslocavam, transformando a
coluna humana em coluna de quadrúpede.
Era como se um gigante invisível
mastigasse seus ossos, esticando os músculos e tendões como se fosse
arrebentá-los.
Depois, uma dor alucinante na
cabeça, como se seu cérebro fosse explodir: o rosto se transfigurava em um
focinho de lobo selvagem.
Os dedos doíam horrivelmente quando
as garras começavam a se projetar, e seu maxilar se abria contra sua vontade
para que os dentes afiados rasgassem suas gengivas.
Depois, brotava o rabo na base da
coluna, uma dor indescritível, que queimava os ossos das costas, em um tormento
insuportável.
E então, para finalizar, os pelos:
cresciam por todo o corpo, como agulhas nascendo na pele.
A partir daquele momento, meia-noite
de uma noite de lua cheia, Lucas Matarazzo já não era um ser humano.
Era uma fera completa.
***
Será que alguém no mundo se sente tão sozinho quanto eu?
Do outro lado do bairro, Fernando
Bragança desligou a TV com um suspiro, deitando-se na cama e ouvindo a chuva lá
fora.
Era inútil continuar resistindo.
Pensava em Violeta quase o tempo
todo, e não era uma coisa que ele pudesse controlar. Sabia o que deveria fazer,
mas e a coragem?
Você não passa
de um belo de um covarde...
Ela se frustrava por ele olhá-la
tanto e não falar com ela. Mas o que ele poderia dizer? Era muita pressão.
Estou me
perdendo totalmente. Acho que já sou seu, olhos castanhos. Boca com hálito de
cereja...
Como fazer a coisa certa?
Fernando se sentia enfeitiçado por
ela.
E decidiu que, se era assim, assim
seria. Decidiu? Não, ele aceitou. Não estava em posição de decidir nada.
Você não passa
de um belo de um covarde, a
voz dela fazia eco em sua cabeça.
Que seja, Violeta.
Busque minha alma, então. Leve tudo o que eu tenho.
Ela teria que salvá-lo do sufoco. E
ele, então, a salvaria da perdição.
Não era amor, disse ele para si
mesmo.
Era questão de sobrevivência.
CONTINUA
*O* me da o Lucas de presente? Poooooooooooor favooor!!! <3 me apaixonei por esse personagem, :s ele é tão amorzinho!
ResponderExcluirNão me mate, mas nem falei do Sr. Darcy porque meu amor pelo Lucas está se tornando cada vez maior ❤️❤️
E eu estou chorosa e deprimida pela sua preferência no Fernando. Ele não tem nada demais.. Já o Lucas é puro amor ❤️❤️❤️❤️
ExcluirEu não sei se tenho uma "preferência", mas fico chorosa e deprimida com você dizendo que o Fernando não tem nada demais kkkk
ExcluirSerá que consigo provocar uma reviravolta no seu modo de ver as coisas? XD