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4. Ritual de Purificação

“Lua crescente
o escuro cresce
a estrela sente”

(Paulo Leminsk)

Já estava escurecendo quando Fernando saiu da igreja, acompanhado pelo pai.
Edgar Bragança era um homem alto, de boa musculatura, fisionomia séria, cabelo e cavanhaque pretos e olhos também escuros.
Com exceção da cor dos olhos, era um perfeito Fernando de 40 anos, inclusive na frivolidade com que parecia encarar o mundo.
Os dois entraram no carro prata estacionado na rua, em silêncio. Edgar concentrado em manobrar o veículo. Fernando com aquele ar distante de sempre.
- A tarde hoje foi proveitosa. – Diz Edgar, quebrando o silêncio. – Evento beneficente, planos para a novena e a reunião da Ordem.
Fernando assentiu, em silêncio.
Edgar desviou os olhos da estrada e olhou para o filho por um momento.
- Eu já ia me esquecendo... – Começa ele. – Tem uma coisa pra você aí.
Fernando o encara com interesse, depois abre o porta-luvas.
Era um caderno pequeno, encapado com couro.
- Pra que isso? – Perguntou, franzindo o cenho.
- Para anotações. – Responde Edgar, bastante sério. – Você sabe, eu espero que você comece a levar a nossa tarefa mais a sério. Observe, anote e me fale se desconfiar de qualquer coisa, está bem?
Fernando assentiu, voltando a olhar pela janela.
Sim, claro. Sempre a Ordem.

***

- Ana Rosa, que negócio é esse?! – Gritou Lena, assim que viu a mulher se aproximando.
A garota olhava para o saco, nauseada.
- Ora, garota – diz Ana Rosa, ríspida. – Quem te mandou fuçar aí, heim? Você e a Violeta têm que aprender a parar de se intrometer no que não é dá conta de vocês, ou um dia ainda vão se encrencar muito seriamente.
Lena cruzou os braços, irritada. Queria confrontar Ana Rosa. Queria dizer que sabia que ela estava aprontando alguma coisa, e escondendo o que quer que fosse dela e de Violeta. Mas sabia que seria em vão, e que a mulher iria apenas desconversar.
- Pra que essa carnificina toda? – Indaga Lena, mas ácida do que pretendia. – Achei que você fosse vegetariana.
- Não é da sua conta, guria! – Ana Rosa revirou os olhos. – São alguns ratinhos, pombinhos e gambazinhos que vou precisar para fazer uma experiência. Vou coloca-los no freezer do porão. Mas, já que você resolveu fuçar, porque não leva você mesma?
Ana Rosa não precisou terminar a frase.
Lena havia lhe dado as costas, e bateu a porta com força assim que entrou na casa.

***

Violeta foi caminhando até o ponto de ônibus, com as mãos no bolso da jaqueta e a cabeça nas nuvens, pra variar. Vez ou outra ela pensava em Fernando Bragança.
Violeta não estava apaixonada.
Mas a curiosidade era maior do que ela.
A curiosidade pode acabar me matando.
Sentiu um arrepio na espinha quando um carro passou por ela, e um rosto a encarou por trás do vidro da janela.
Seu coração deu uma cambalhota.
Foi tudo muito rápido para que ela pudesse ter certeza.
Devo estar ficando louca.

***

Lena estava na cozinha, terminando de jantar, quando Violeta chegou.
- Precisamos conversar. – Disse a primeira, lavando o prato rapidamente.
As duas subiram para o sótão, e Lena trancou a porta.
- Ana Rosa está aprontando alguma coisa.
Violeta escutou Lena falar sobre o estranho na igreja e o saco de animais mortos no jardim.
- Eu sei que é estranho. – Disse Violeta, quando Lena terminou. – Mas Ana Rosa tem e sempre terá muitos segredos. É o jeito dela fazer as coisas. Por mais que possa ser irritante, ela faz isso para nos proteger.
Lena assente, pensativa.
- É, eu sei. Mas não consigo parar de pensar... Que tem alguma coisa que ela deveria nos contar.
- Vamos descer. – Diz Violeta. – Ana Rosa nos chamou para fazer um ritual hoje. É o último dia de lua crescente, e ela colheu várias rosas brancas. Depois que acabarmos, podemos fazer coroas de flores e colocar na cabeça. Vamos parecer bruxas muito hispsters no instagran.
- Porque nossos rituais são tão chatos? – Resmunga Lena, com um meio sorriso. – Quando vamos dançar peladas em volta de uma fogueira, no meio do mato?
Violeta ri, depois finge suspirar.
- Também não vejo a hora, Lena. Mas acho que isso é magia avançada.

***

Lucas andava de um lado para o outro pelo quarto.
Olhou para o relógio.
Já estava ficando tarde, mas ele não conseguia parar.
Sentia a energia circular dentro dele, como se o seu sangue circulasse pelo corpo mais rápido do que o normal. Seria uma sensação de puro êxtase, se ele não soubesse o que estava por vir.
Lucas estava terrivelmente ciente do drama que se aproximava.
Olhou pela pequena janela do quarto, uma vidraça empoeirada. A lua estava crescente, e estava bastante escuro.
A vontade de Lucas era correr por aí, sem destino, gastando aquela energia insana.
Voltou a pensar na garota de cabelo castanho que ele havia visto no shopping. Imaginou-se indo até ela e beijando-a. Imaginou-a sorrindo para ele, e tudo o que fariam em seguida.
Se ele pudesse tê-la com ele...
O pensamento o fez estremecer.
Não.
Jamais poderia tê-la por perto. Porque ela seria do monstro.
O monstro a pegaria e a destroçaria, do mesmo jeito que um gato faminto destroça um camundongo bebê.
Louco, louco, louco.
O estômago de Lucas roncou.
Ele já havia comido a pratada de comida e torta de couve que Ana Rosa lhe dera para o jantar, e ficara satisfeito.
Mas a fome havia voltado, quase feroz.
Era o monstro.
O monstro precisava se alimentar.

***

- Se concentrem. Fechem os olhos e visualizem a força da lua crescente, o brilho crescendo dentro de vocês mesmas. A força da Deusa em sua fase donzela. Visualizem. Quando conseguirem ver com clareza, bebam o chá. Peçam proteção e sabedoria. A lua cheia desse mês trará muitas desventuras para todas nós, é melhor estarmos preparadas.
Ana Rosa conduzia o ritual.
Violeta e Lena estavam sentadas no chão, no meio de um círculo feito com pétalas de rosa branca e velas pretas acesas.
O porão, iluminado por aquela atmosfera de miticismo, parecia mais do que um cômodo cheio de caixas empilhadas e móveis velhos.
E era mesmo.
Ana Rosa gostava de praticar a maioria dos rituais ali. Era silencioso e garantia discrição, dizia ela.
Não havia contado para as meninas que sob seus pés estavam enterradas bruxas ancestrais, claro. Elas ainda não estavam prontas para isso.
Ana Rosa suspirou, observando as sobrinhas.
O cheiro do chá de erva-doce e anis-estrelado enchia o recinto.
Elas seriam grandes bruxas.
Mas era tão difícil saber quando estariam preparadas para certas coisas. Ana Rosa não conseguia parar de vê-las como apenas duas meninas.
Olhou para a expressão compenetrada de Lena, com a testa franzida, e o rosto relaxado de Violeta. Uma pensava demais, a outra sentia demais. Como fazê-las alcançar o equilíbrio?
- Peçam por proteção. – Repetiu Ana Rosa. – E que todos os deuses iluminem os seus caminhos.

***

Era ela. Era ela no ponto de ônibus.
Fernando se fechou no quarto, suspirando e deixando-se cair na cama.
Violeta quase o amedrontava. Ela o assombrava.
Aquela sereia de cabelos castanhos, cujo canto, se ouvido, poderia fazê-lo naufragar.
A reunião da Ordem daquela tarde passou pela sua cabeça.
O padre Elias era quem sempre dirigia as reuniões.
Por mais que Fernando o conhecesse desde que era criança, e que todos dissessem que o padre era um homem bom, ele ainda lhe deixava inquieto.
Talvez o modo como ele olhava as pessoas nos olhos quando falava, como se pudesse adivinhar os pecados de cada um.
Ou talvez porque diziam que ele já havia estado no Vaticano e feito exorcismos de verdade.
Independente de qualquer coisa, era o padre Elias que coordenava a Ordem, assim como Edgar Bragança, o pai de Fernando.
Ele já nascera dentro daquele pacto religioso, e sabia que tinha uma missão. A missão da Ordem. A missão de combater o mal, principalmente o tipo de mal que as pessoas não conseguiam enxergar, ou achavam que não passavam de histórias.
Fernando queria saber a história de Violeta.
Espero que as trevas não estejam tentando invadir o meu coração, pensou ele, sentando-se na cama e pegando sua guitarra.
Dedilhou o instrumento, com a mente distante.
Quando ele menos esperava, andando de carro com o pai, ela lhe aparecera. Ali parada, no ponto de ônibus, com o cabelo esvoaçando ao vento. Na mesma hora ele se encolhera, como se tivesse sido atingido por um golpe.
Por-tudo-que-é-mais-sagrado-o-que-aquela-garota-fazia-com-ele?
Largou a guitarra.
Nem a música, sua velha amiga, lhe dava ânimo.
Seus olhos pousaram no caderno com capa de couro, jogado na escrivaninha.
De súbito, levantou da cama e se sentou diante da mesa. Abriu o caderno na primeira página, pegou uma caneta preta e, depois de pensar um pouco, começou a escrever.

***

Lucas entrou devagar pela porta da cozinha da Pensão, sem fazer nenhum ruído.
A luz estava acesa, mas não havia ninguém a vista.
Sorrateiro, foi até a geladeira, abrindo apressadamente os compartimentos, tentando encontrar o que precisava.
Ana Rosa não parecia fazer compras como uma pessoa normal. Praticamente tudo ali vinha da horta dela.
Ela o mataria se o visse por ali. A mulher havia deixado bem claro que não o queria nem perto da casa durante a noite, quando suas protegidas estavam por lá.
Mas ele estava pouco se fodendo para o convento de Ana Rosa.
Lucas revirava a geladeira, atento a qualquer som de passos. Mesmo assim, foi surpreendido por uma pancada forte no ombro, que o derrubou.
- Ai! – Exclamou, caindo de mal jeito e batendo as costelas no gabinete da pia.
Tentou levantar, zonzo, mas outro golpe, dessa vez em sua mão, o fez xingar a mãe de alguém.
Olhou para cima.
O Sr. Cardoso apontava a bengala de madeira para o pescoço dele.
- O que pensa que está fazendo aqui?! – Gritou o velho, faltando muito pouco para que a dentadura lhe saltasse da boca.

   CONTINUA

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