“O
critério
‘atitudes
estranhas’
não
dá
para
condenar pessoas
criaturas
com
entranhas.”
(Paulo Leminski)
- Que diabos foi isso? – Perguntou Violeta,
ao ouvir o estrondo vindo do andar de cima.
- Fiquem aí – disse Ana Rosa, mais
ou menos adivinhando do que se tratava e subindo a escada do porão de três em
três degraus. – Não quebrem o círculo, ainda não terminamos! Me esperem
exatamente aonde estão.
Lena e Violeta deram de ombros.
Sempre aconteciam coisas estranhas na Pensão, e não era nada saudável
desobedecer Ana Rosa nessas ocasiões.
- Nós já terminamos o ritual. – Diz
Lena, mordendo o lábio inferior. – Podemos fechar o círculo, se quisermos.
- É verdade – concordou Violeta. –
Ela já nos ensinou isso.
Mas nenhuma das duas se mexeu.
***
- Sr. Cardoso – dizia Ana Rosa, com voz doce, tentando acalmar o velho. – Está tudo bem. Lucas é nosso hóspede. Ele vai ficar no quarto dos fundos, e não vai incomodar ninguém.
O velhinho ficou encabulado.
- Ah! Devia ter me contado,
Arabella. Eu quase morri do coração ao vê-lo aqui.
- E eu quase morri às bengaladas –
resmungou Lucas, levantando-se do chão.
- Você está bem, rapaz? – Perguntou
o Sr. Cardoso, voltando a ser um velhinho inofensivo.
- Só estou um pouco dolorido, obrigado. – Revida Lucas,
seco.
Ana Rosa o cutuca, zangada.
- Ora... Mereceu ter ficado
dolorido, Lucas Matarazzo! Quem te autorizou a entrar aqui?
- Eu tive fome. – Resmungou ele. –
Não deu pra segurar.
Ana Rosa revirou os olhos e abriu a
geladeira, estendendo um saquinho de carne moída crua.
- Tome.
Lucas pegou a carne, sem entender.
- Alimentação específica. –
Respondeu a mulher, cruzando os braços. – Vai te ajudar, pode confiar. Ah, e
antes que eu me esqueça, amanhã você vai ao colégio. Já resolvi tudo.
Lucas a olhou, sem reação.
- Colégio? Mesmo? No que a senhora
acha que isso vai me ajudar?
- Vai te ajudar a não ser um
ignorante. E a se distrair um pouco, ou vai enlouquecer. E me enlouquecer
também. Não concorda, Sr. Cardoso?
- Ah, sim... Claro! – Exclamou o velhinho,
ajeitando os óculos redondos sobre o nariz. - Crianças precisam ir à escola.
- Agora vai. Pro seu quarto, rapaz.
– Diz Ana Rosa, virando-se para voltar ao porão e pondo um ponto final na
questão.
Lucas revirou os olhos e obedeceu a
contra gosto, chutando pedrinhas no quintal pelo caminho.
Cheirou o pacote de carne crua, e
para seu desgosto e alívio, o cheiro lhe pareceu absurdamente apetitoso.
***
No dia seguinte, Fernando chegou ao colégio em cima da hora.
Estava se sentindo cansado.
Além de ter ido dormir tarde, havia
tido sonhos a noite toda. E a maioria deles contava com a presença de Violeta.
Havia ajeitado o cabelo com gel da
melhor forma possível, mas haviam olheiras sob os olhos verdes naquela manhã.
Parou no bebedouro para tomar um
gole de água gelada, percebendo que alguém se aproximava.
- Fernando?
Ele levantou a cabeça para olhar,
recebendo um punhado de água na cara. Era mais uma da série de brincadeirinhas-sem-graça-e-irritantes-de-Briana-Brigantia.
- Ah, oi. – Diz ele, secando o rosto
com a manga blusa.
Briana sorriu.
- Bom dia, querido. – Disse,
cumprimentando-o com um beijo no rosto, como de costume. - Novidades?
Fernando deu de ombros.
- Nenhuma. Por quê?
- Como foi o ensaio com a banda
ontem? – Pergunta Briana, enquanto os dois começam a caminhar pelo corredor.
- Foi... Bom. – Diz Fernando, com a
mente distante.
- Como é mesmo o nome da banda?
- Fallen Angels. – Respondeu,
automaticamente.
Ela sorriu.
– Meio estranho pra uma banda que
toca na igreja, não é?
- Foi o vocalista que escolheu. Eu
só toco guitarra.
- Eu sei. – Diz Briana, com um
sorriso de canto e dando uma piscadela. – Todo mundo sabe.
Fernando deu de ombros, abrindo
caminho entre os outros estudantes até a sala de aula.
Ele era popular, sabia disso. E não
se importava.
Não fazia diferença se grande parte
da escola o conhecesse, quando ele não conhecia quase ninguém.
Quase esbarrou em um garoto
estranho, cabelo emo, meio perdido, uniforme amarrotado.
Olhou para o garoto de cima a baixo
antes de seguir para a sala de aula.
Que visual mais
sinistro... Deve ser um idiota.
***
- Sabe, Lena – dizia Violeta,
chupando um pirulito de framboesa enquanto as duas desciam as escadas que
levavam para o pátio, na hora do intervalo. – Acho que vou convidar o Fernando
para tomar um café comigo. Hoje.
Lena abre um sorriso, tirando o
pirulito de maçã verde da boca.
- Resolveu atacar com artilharia
pesada, é? Cuidado para não matá-lo do coração.
- Não vai ser um encontro. Eu só
quero deixar bem claro que se ele não parar de ficar olhando fixamente pra mim
toda vez que me vê, eu vou denunciá-lo pra direção da escola por assédio.
- Garota, mandou bem. – Diz Lena,
fazendo sinal possitivo. – Mas e se ele pedir desculpas e disser que gosta de
você, mas não tinha coragem de se declarar?
- Daí eu faço uma serenata pra ele.
Violeta
começa a cantar:
I wanna fight how the boys fight
I wanna love how the boys love
I wanna be where the boys are…
(Eu quero estar onde os garotos estão
Eu quero brigar
como os garotos brigam
Eu quero amar como os garotos amam
Eu quero estar onde
os garotos estão...)
Lena ia rir da cara de Violeta, mas
outro detalhe chamou a atenção dela.
Um garoto esquisito passou pelas
duas.
- Aquele garoto é aluno novo, não é?
– Sussurrou. – Com o cabelo compridinho?
Violeta olhou para onde Lena olhava,
e por uma infelicidade do destino, o garoto olhou para ela no mesmo momento.
Ela rapidamente desviou o olhar.
- Violeta, ele fixou os olhos em
você. – Diz Lena. – Comprou uma poção pega-homem na loja da cigana, ou o que?
- Que bobagem. – Diz Violeta, séria.
– Cadê o Jaime?
- Na cantina. Pediu pra gente
encontrar ele lá.
- Ah, Lena... O Jaime vai me pagar
um chá gelado, não vai? Por favor... Se não pedir a ele, eu peço!
- Ele não deveria te pagar nada –
brinca Lena. – Mas parece que meu namorado gosta de te mimar, colega.
- Talvez ele tenha algum fetiche e
espere ver nós duas nos pegando um dia. – Sugere Violeta.
Lena ergue uma sobrancelha.
- Garota, essa foi podre.
Violeta concorda.
- É, às vezes eu falo podridão. É
como um segundo idioma.
- Cala a boca, Violeta.
***
Que droga de lugar é esse?
Lucas havia pensado, assim que
passara pelos portões do Colégio Castro Alves.
Sua maior vontade foi dar meia
volta, mas só de pensar na cara que Ana Rosa faria quando o visse voltando...
Ele já havia aprendido que o mais sensato era nunca desobedecer as ordens
daquela bruxa.
Os alunos daquele escola eram tão...
Nada haver.
Nem olharam para a cara dele.
Estavam todos muito ocupados
cuidando de suas preciosas vidinhas.
Aquele uniforme também não ajudava: Lucas se sentia estranho com o conjunto preto e cinza, com uma âncora vermelha bordada no peito.
A única pessoa que havia conversado
com ele foi a garota que sentava na carteira da frente.
Pelo menos alguém pra bater papo
enquanto tivesse que ficar por ali.
No intervalo, ele teve vontade de
pular o muro e escapar daquele inferno de tédio, podia cabular as aulas do
segundo período, fumar um cigarro, dar uma volta pelo bairro.
Mas então ele a viu.
A garota que passara por ele na rua.
A garota da livraria.
E ela o vira também.
Lucas concluiu que talvez aquela
escola não fosse tão ruim. Talvez Ana Rosa tivesse razão.
Talvez o colégio fosse uma ótima
distração.
O que ele não podia imaginar era que
se distrair com Violeta poderia ser um passatempo muito perigoso para um
garoto.
***
Violeta saiu sozinha e determinada pelo pátio externo.
Lena a observava de longe.
Violeta queria olhar para Fernando
Bragança com ar superior.
Queria vê-lo ficar sem graça com a
presença dela.
E assim foi. Ele pareceu querer
fugir ao ver que ela se aproximava.
Então você gela
só de olhar pra mim?
- Oi. – Disse ela, sorrindo com
arrogância.
Violeta estava atrevida hoje.
- Oi. – Disse ele, com uma
piscadela.
Violeta ficou desconcertada. Ela
havia planejado convidá-lo para ir ao Point Coffe depois da aula, mas não
conseguiu. As palavras que saíram da boca dela foram bem diferentes.
- Por que você me olha tanto? –
Perguntou, antes que conseguisse se conter.
Sua determinação desabou. Ela estava
se sentindo minúscula agora, e tinha certeza de que seu rosto estava ficando
vermelho.
Ele não respondeu na hora. Nem a
encarou quando falou.
- Eu não fico olhando pra você.
Violeta cruzou os braços, engolindo
em seco.
- Ah, fica sim. O tempo todo. Desde
o ano passado. Por que me olha tanto, e nunca fala comigo?
Fernando a encarou.
- Eu sou meio distraído. Desculpe se
alguma vez fiquei te encarando sem querer. Vou tomar cuidado para não acontecer
de novo.
Violeta o olhou, incrédula.
Depois, lentamente, ela sorriu.
Mas foi um sorriso amargo.
Se aproximou dele e sussurrou:
- Você não passa de um grande
covarde.
Se afastou dali, decidida, abandonando
o pátio externo.
Seu coração havia disparado e o
cheiro dele ainda estava nas suas narinas, mas quem se importa? Ela havia
vencido.
Só que ela não conseguiu prever no
que resultaria sua vontade de brigar como os garotos brigam, amar como os
garotos amam, e estar onde os garotos estão... Muito menos o que poderia haver
por trás da suposta covardia de Fernando.
CONTINUA
*Queixo caindo*
ResponderExcluirEu nunca vou conseguir gostar do Fernando, sériiiiio! Ele é tão sem graça, insuportável. Hahaha. Já o Lucas... Sei lá, a Violeta precisa ficar com ele (e vai ficar, né?).
Estou amando as mudanças que você está fazendo na história, deixando-as mais próximas de bruxas, incluindo mais detalhes sobre isso. Está incrível ❤️❤️
Obrigada, Carla <3
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