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10. O Primeiro Beijo

“E adoro, idolatro, beijo
Os duros grilhões de Amor.”
(Bocage)

- Você é linda de um jeito que me faz perder o ar. – Disse Lucas. – Eu fico tentando encontrar palavras que possam descrever o que você me faz sentir com apenas um olhar, com apenas um gesto, mas elas me faltam. Me falta ar, me faltam palavras, me falta você.
Violeta apertou mais os braços contra si.
- Bem, eu duvidaria das suas palavras se não estivesse precisando acreditar em alguma coisa nesse momento. Eu riria e o acusaria de estar carente, se eu não tivesse que alimentar minha própria carência também.
- Eu sei, você quer rir a minha cara – concorda Lucas. – Deu pra perceber pelo jeito que sua boca estremeceu. Os seus lábios parecem um gato, que pula telhados quando você fala.
Dessa vez, ela não tenta conter a risada.
- Você ensaia esse tipo de fala?
- Não. – Lucas também sorri, enfiando as mãos no bolso do jeans. - Essa foi espontânea. Normalmente, eu me envergonharia de dizer essa coisas, mas não pra você. Eu sinto, por algum motivo, que eu posso dizer tudo o que eu penso pra você.
Os dois pararam, ficando frente a frente, o vento desarrumando seus cabelos e deixando seus rostos mais corados.
Haviam caminhado do ponto de ônibus do shopping pela estrada cercada de árvores e mato.
- Então continua. – Provoca ela.
Lucas deu um passo a frente, encarando-a, tão perto que seus narizes quase se tocavam.
- Eu quero vestir você com as minhas roupas só pro seu cheiro ficar nelas. – Começa ele. – Eu quero passar a mão pelo seu cabelo porque acredito que tem alguma coisa mágica em cada fio dele. E eu quero te beijar porque eu simplesmente não aguento mais apenas imaginar isso.
Violeta se inclinou um pouco pra frente.
- Você pode me beijar – sussurrou ela. – Se guardar o segredo da minha boca de gato.
- Eu guardo.
- Eu nunca beijei um cara.
Lucas dá um meio sorriso, embora estivesse surpreso.
- Não tem problema. Eu também não.
E ele a beijou.
***

Violeta.
Fernando fechou os olhos.
Às vezes ele sentia que era capaz de bloquear tudo ao redor dele e concentrar todos os seus sentidos nela, como se pudesse senti-la do mesmo jeito que alguém sentia dor, fome, coceira ou esperança.
Cada vez que ele fugia, só se aproximava mais.
O que havia sido aquele pesadelo perturbador na semana passada? Aquela rosa incandescente que desapareceu, e o mundo empesadeleceu.
- Você está bem?
Sentiu uma mão macia em seu rosto, aquele perfume caro e marcante.
Abriu os olhos e viu Briana o observar com curiosidade.
Enfim ela havia feito uma pausa no falatório sobre si mesma e prestava atenção em outra pessoa.
Estavam no Point Coffee, sentados em uma mesa com algumas pessoas da escola. Nenhum amigo, não para ele.
- Estou com um pouco de dor de cabeça. – Disse ele, sentindo-se aborrecido de repente, enquanto brincava com um guardanapo com os dedos.
- Você parece meio entediado. – Comenta ela, dando um gole no refrigerante dele.
- Sabe, você é muito observadora. – Diz Fernando, com um sorriso quase maldoso.
Briana também sorri. Ela não falava a língua do sarcasmo.
- Quer ir pra outro lugar? Podemos ver um filme ou ir pra alguma balada mais tarde.
- Briana, é quarta-feira.
- Eu não ligo. – Diz ela, franzindo a testa e dando de ombros. – Não existe dia ruim pra música eletrônica e drinks com morango.
- Eu acho que vou pra casa descansar. – Diz ele, soltando o guardanapo.
Briana se inclina e dá um beijo de despedida no rosto dele.
- Sem proble. Nos falamos amanhã.
Fernando sorriu sem vontade e saiu do Point Coffe.
Não importa com quem ele estivesse, aquele lugar invocava Violeta.
Violeta atirando um sapato na cabeça de Briana – aquilo sim era memorável. E com certeza nada entediante.
Vou fazer uma macumba tão foda pra você, que você vai desejar nunca ter nascido.
 As palavras dela para Briana.
Ele havia imaginado que ficar com Briana poderia ser uma distração, mas na verdade era bem chato.
Não que ela não soubesse beijar bem, ou não fosse bastante maleável e até divertida às vezes, mas nunca havia um único assunto interessante para conversar com ela.
Os olhos azuis e até o cabelo loiro eram clichês demais.
Nada poético.
Nada que fizesse seu sangue correr mais depressa, ou seus dentes baterem de pavor após acordar no meio da noite banhado em suor.
O que o atraia para Violeta, afinal?
Se sua atração por essa garota é causada pelo medo, talvez seja melhor você procurar por ajuda.
A garota que antes ele apenas admirava de longe agora ocupava os seus pensamentos o dia todo. E quanto mais ele tentava reunir provas do que ele desconfiava, mais se sentia perdido por ela.
Ficar com Briana para tentar escapar da prisão que ele mesmo havia feito em sua cabeça foi um erro.
Porque toda vez que Violeta passava por ele sem olhar, como se ele não existisse, Fernando sentia uma parte dele morrer.
E isso só serviu para assustá-lo ainda mais, mostrando quanto poder ela tinha sobre ele. Era um tremendo choque.
Sem pensar muito, Fernando passou reto pela rua da própria casa e seguiu na direção da estação de metrô.
Precisava falar com Kenji.

***

- Droga, Lena. Porque você sempre foge do assunto? – Perguntou Jaime, aborrecido, apoiado no balcão da academia.
Lena franziu a testa, deixando a revista que folheava de lado.
- Eu fujo do assunto, Jaime? Você que parece ter perdido a noção. Se eu não te conhecesse, diria que você está usando drogas.
Ele revirou os olhos.
- Então você não vai mesmo me dizer o que aconteceu naquele dia no parque? Quando eu cai da pista de skate e misteriosamente fui parar no gramado?
Lena suspirou.
- O que você quer saber? Quer que eu diga que um unicórnio te espetou na bunda com o chifre e fez você mudar de direção?
Jaime balança a cabeça.
- Eu estou falando sério... Senti uma coisa realmente estranha acontecendo...
- A coisa estranha foi você quase morrer. – Diz Lena, ácida. – Quer fazer o favor de parar de revirar terra desse túmulo? Esse assunto já era.
Jaime ergue os braços, dando-se por vencido.
- Tudo bem, se você está dizendo que não viu nada de anormal...
- Fora você quase se arrebentar? Não, nada.
Ele ia dizer algo, mas um dos clientes da academia pediu uma toalha limpa, e Lena teve que ir ao auxílio dele, quase aliviada.

***

Violeta levantou aqueles olhos grandes para Lucas, e o coração dele bateu um pouco mais devagar.
- Agora eu tenho que ir – disse ela, com um meio sorriso. – Mesmo. Ou vão começar a andar pelas paredes lá em casa.
- Você mora longe?
- Não. Só que minha tia implica comigo se eu voltar muito tarde. Ela é uma mulher extraordinária.
Lucas assentiu, sacudindo a cabeça.
- Ah, entendo. Eu moro bem perto. Vou a pé.
Os dois conversaram mais um pouco antes que o ônibus chegasse. Violeta deu um beijo nele antes de embarcar.
- Vamos nos ver de novo, não é? – Perguntou, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha.
- Claro!
- Tchau, Lucas.
- Tchau... Violeta.
Ele viu o ônibus ir embora e virar a esquina na rua já escura. E alguma coisa explodiu no seu coração.

***

Kenji liberou a entrada de Fernando no prédio, e assim que escutou a campainha do apartamento, abriu a porta em um pulo.
- Você chegou bem na hora. – Diz ele. – Precisa ver o jogo que eu acabei de comprar: Ataque dos Zumbis Vampiros IV.
Fernando dá um meio sorriso.
- Legal. Mas não vim pra jogar videogame.
- Como não? Achei que o único motivo de você ligar e dizer que estava vindo pra cá era a vontade de matar e arrancar as tripas de alguns mortos-vivos.
- Kenji... Eu queria alguém pra conversar.
Kenji ergue os braços.
- Espera aí... Vamos precisar de Coca-Cola. E ainda bem que meus pais não estão. Vamos pra cozinha.
Fernando o seguiu pelo apartamento com móveis em excesso, mas que de alguma forma era aconchegante com todos aqueles puffs e almofadas coloridas.
Os vários retratos nas paredes, as estatuetas de Buda, os vários origamis e o cheiro de incenso lembravam a Fernando da própria infância, quando ele e Kenji passavam horas brincando, até acabarem quebrando alguma porcelana e deixarem a mãe de Kenji furiosa, mas não o suficiente para que ela não fizesse rolinhos primavera recheados com queijo para o lanche.
Kenji encheu dois copos com o refrigerante gelado e se sentou em uma cadeira.
- Pode começar.
Fernando tomou um gole da Coca-Cola, pensando em como iniciar aquela conversa, que nem ele mesmo sabia muito bem do que se tratava.
- Sabe, Kenji... Tem uma garota.
- É claro que tem uma garota. Sempre tem uma garota. É a mesma garota do dia em que tocamos com a banda no seu colégio, não é?
Fernando sentiu o rosto ficar vermelho, e tomou mais um gole de refrigerante pra tentar se acalmar.
- É. É ela.
- Então Fernando Bragança está apaixonado – sorri Kenji. – Isso sim é uma novidade. Eu sempre soube que esse dia iria chegar, e que você iria me procurar porque é tão tímido e reservado que não faz ideia de como se aproximar de uma menina.
Fernando revira os olhos.
- Não, você errou. Não estou apaixonado por ela. E se você quer mesmo saber, estou ficando com outra pessoa.
- A loira inconveniente – Kenji balança a cabeça com pesar. – Então você está aqui porque quer se livrar dela? Sei onde podemos esconder o corpo, mas vai sair caro pro seu bolso.
Fernando apenas franze a testa.
- Pare de brincar, Kenji. Eu preciso ter uma conversa séria com alguém.
- Desculpe. Vou deixar você me contar seu drama. Não vou fazer mais nenhuma gracinha, palavra de escoteiro.
Fernando suspirou.
- Eu não vou negar que acho aquela garota atraente. Mas tem alguma coisa estranha nela... Toda vez que ela se aproxima, eu não consigo deixar de olhar pra ela e pensar que parece até que ela está chamando por mim, mas sei que ela não está. Eu a vejo em meus sonhos, e coisas esquisitas acontecem neles – e depois. Os meus pesadelos estão se misturando à realidade.
Fernando ergue os olhos da mesa para a expressão do amigo, que não se alterou.
- Cara, eu acho que você precisa relaxar. – Diz Kenji, coçando o queixo. – Tempo pra pensar e perceber o que você não quer aceitar: você está apaixonado por essa garota.
- Não, eu não estou – teima Fernando. – Não é um interesse amoroso que eu sinto por ela, e se for paixão, é algo quase doentio. Não é como se eu pudesse controlar... E eu desconfio... Desconfio que ela não é apenas o que aparenta.
Kenji o observou sem dizer nada por alguns segundos.
- Estou começando a ficar realmente preocupado com você. Fernando, pare de enrolar e fale de uma vez. O que está acontecendo?
Fernando comprimiu os lábios.
Você fodeu com tudo...
Ele se inclinou sobre a mesa, como se temesse que outra pessoa os escutasse, mesmo não havendo outra pessoa no apartamento.
- Kenji – começa ele, quase num sussurro – Eu acho que ela é uma bruxa.

***

- Oi, Sr. Cardoso. – Cumprimentou Violeta assim que fechou a porta da sala atrás de si.
-Ah... Oi, Violeta – resmungou o velho, apressando-se em tirar do canal das novelas. – Ana Rosa estava procurando por você.
Mal ele concluiu a frase, Ana Rosa veio correndo da cozinha, como um furacão ruivo, agitando um ralador ainda com vestígios de cenoura.
- Por que demorou?!
Violeta cruzou os braços, fazendo charme.
- Estava resolvendo umas paradas.
- Umas paradas! – Cuspiu Ana Rosa, emburrada. – Acha que não me deve satisfações, criatura? Chegou mais tarde do que o normal, perdeu o ritual de hoje, me vem com esse sorriso convencido na cara e...
Ana Rosa para.
Violeta ergue uma sobrancelha.
- E...? – Desafia ela.
Ana Rosa dá três passos na direção dela e para diante de Violeta, examinando-a atentamente.
- Ah! Você foi beijada!
Violeta recuou e levou a mão até os lábios, instintivamente. Correu até o espelho na parede da sala.
- Como você percebeu? – Perguntou, em uma mistura de surpresa e revolta, tentando ver alguma coisa de anormal nos próprios lábios.
- Quantas vezes terei que falar que eu sei das coisas, guria? – Ana Rosa ainda parecia irritada. – Agora quero saber o que a senhorita andou aprontando! Quero saber sobre o rapaz, vamos. Me conte tudo.
Violeta deu seu sorriso mais indisciplinado.
- Desculpe, Ana Rosa. Não posso dizer nada antes de contar tudo pra Lena.
Dizendo isso, fez uma mesura graciosa e subiu correndo a escada que levava para os quartos.
- Violeta! Desça até aqui imediatamente! E venha jantar!
- Não estou com fome! – Responde uma voz já no andar superior.
O Sr. Cardoso bufa na poltrona.
- Hmm... No meu tempo, se um rapaz queria beijar uma moça, tinha que falar com o pai dela.
Ana Rosa franze o nariz.
-  Ainda bem que os tempos mudaram, senhor, porque era uma caretice machista. – Depois suspira. – Mas eu não estou com um bom pressentimento sobre isso.

***

- E então ele me beijou – Finaliza Violeta, fazendo uma trança castanha nos cabelos, depois de contar todos os detalhes para Lena. – Nos despedimos, e eu vim pra casa.
Lena balança a cabeça, pensativa.
- Pelo jeito você está feliz. – Observa.
- Eu estou. – concorda Violeta, dando um sorriso. – Ele é um cara incrível. Eu gostei dele.
- Mas eu não vejo a emoção de uma garota contando sobre o primeiro beijo. – Cutuca Lena.
- Como assim? – Indaga Violeta.
- Você está muito tranquila. Não parece uma menina de 16 anos que acabou de ter o seu primeiro envolvimento amoroso.
Violeta baixa os olhos para a ponta da trança, enrolando o elástico nos dedos.
- É que eu me sinto mais velha. Menos quando tento imaginar o que vou fazer quando vê-lo no Colégio. Como devo agir?
- Seja espontânea. – Aconselha Lena. – Apenas seja simpática com ele.
Violeta balançou a cabeça, encarando os próprios olhos no espelho.
- Sabe, estou começando a sentir fome. Vamos descer e fazer um chá de hibisco?
Lena apenas dá um meio sorriso.
- Ana Rosa vai matar você.

***

Lucas chegou à Pensão ainda mais tarde do que Violeta.
Ele havia caminhado sem pressa, sentindo tudo ao redor anoitecendo enquanto aquele sentimento de cura inundava todos os seus sentidos.
Porque ela era aquilo para ele: cura. Como se depois de tanto tempo sangrando, finalmente houvessem lhe dado um curativo para suas feridas.
Trancou o portão da Pensão com a chave que Ana Rosa lhe dera, e ia seguir direto para o seu quarto, mas não conseguiu.
A sensação o eletrizava, deixava-o agitado demais para conseguir apenas ir dormir.
Precisava conversar com alguém.
Ana Rosa estava perto do fogão, em cima de uma escadinha, mexendo vigorosamente com uma colher de pau que mais parecia um remo em um caldeirão enorme, que ocupava as quatro bocas do fogão.
Lucas parou diante da porta aberta.
- Ana Rosa... Mas que diabos é isso?
A velha mulher riu, sem ao menos olhá-lo.
- Nem queira saber, guri. Em alguns minutos te levo o jantar. Vá para o seu quarto. Não pode ficar aqui.
Lucas cruzou os braços.
- Eu não vou a lugar algum sem falar com a senhora antes.
Ana Rosa suspira, descendo da escada e abaixando o fogo.
- Pois bem. Fale logo.
Lucas hesita, brincando com o zíper da jaqueta.
- Eu acho que estou apaixonado.
Ana Rosa colocou as mãos na cintura, impaciente.
- E por que isso deveria me interessar?
- Eu nunca me senti assim antes. Parece até que o meu encontro com ela foi um tipo de sonho ou alucinação... Eu fecho os olhos e ainda consigo ver a silhueta dela numa sombra da esquina, esperando para soprar fogo e felicidade em mim...
Ana Rosa semicerra os olhos.
- Espere um pouco... Esse seu olhar atormentado... Eu já vi um desses hoje! – Ela arregala os olhos, dando-se conta de tudo de repente. – Pelas ancestrais sagradas, como eu não percebi antes?! Você e Violeta estão apaixonados!
Dessa vez foi ele quem ficou surpreso.
- Você a conhece? Como sabe o nome dela?
Mas a mulher não teve tempo de responder.
- Lucas? - Violeta parou na entrada da cozinha, incrédula. - O que... O que está acontecendo aqui?
Lucas viu Violeta e a amiga dela, a garota negra de cabelos escuros, entrarem na cozinha, e não conseguiu falar mais nada.
Eram elas as garotas que moravam com Ana Rosa.
Justo ela, a garota que ele mais desejava estar perto, era quem Ana Rosa tentara manter longe dele. Protegida. A salvo.
- Muito bem. – Ana Rosa parecia estranhamente calma, agora. – Lena, Violeta; este é o nosso hóspede. Lucas, essas são as minhas sobrinhas. Embora eu desconfie de que você e Violeta já se conheçam bem demais.
Violeta balançou a cabeça, se recusando a deixar que Ana Rosa a constrangesse.
- Isso sim é uma surpresa. Por que não nos apresentou ele antes?
- Eu não o conhecia. – Rebateu Ana Rosa, secamente. -Não sabia se seria seguro.
- Se não fosse seguro, Violeta já estaria perdida. – Comenta Lena, maliciosamente.
Ana Rosa resmunga, voltando-se para o fogão.
- Eu não acho que o fato dos dois terem trocado alguns beijos muda as regras dessa casa. Eu não controlo a vida de vocês, mas enquanto estiverem sob o meu teto ele continua no canto dele e as duas no canto de vocês. Simples assim.
Lucas deu de ombros.
- Boa noite. – Disse, lançando um olhar esperançoso para Violeta. – Nos vemos amanhã.
Ele saiu e fechou a porta da cozinha, mas Violeta não daria o braço a torcer tão fácil.
- Por que você o isolou naquele quartinho velho? – Perguntou, com uma nota de irritação. – Ele é só um garoto. E nós sabemos nos cuidar. Por que não o deixa ficar em um dos quartos de hóspedes?
- Isso não é da sua conta. – Corta Ana Rosa. – Eu tenho os meus motivos. Agora peguem logo o que vocês quiserem e vão para o sótão.
- Claro – diz Violeta, amarga. – Mas antes vou me despedir de Lucas direito.
Ela atravessou a cozinha em passo duros e bateu a porta ao sair.
Ana Rosa deu um suspiro irritado.
- Essa garota esta ficando impossível! Não posso mais simplesmente controlá-la...
Lena ergue uma sobrancelha.
- E por acaso alguém já foi capaz de controlar Violeta?

 ***

Violeta bateu timidamente na porta do quarto.
- Lucas?
Ele abriu a porta.
- Hey. Tudo bem?
- Aham. Eu vim pedir desculpas pela Ana Rosa. Ela é a melhor pessoa do mundo, mas às vezes gosta de enlouquecer a gente.
Ele sorri.
- Você quer entrar?
Violeta dá de ombros e entra.
- Como aqui é frio. – Comenta ela, olhando ao redor.
- Desculpe pela bagunça – pede ele, tirando uma pilha de roupas que ocupavam a única cadeira, para que ela pudesse se sentar.
Mas Violeta o ignora, andando pelo quarto e analisando o mofo nas paredes como se pudesse lê-lo.
- Ana Rosa guardava móveis antigos aqui. Mas a umidade começou a estregá-los, e ela teve que levar todos para o porão.
Lucas olha para ela, sentindo-se meio desnorteado. A presença nela naquele lugar que de alguma forma era tão íntimo para ele o fazia se perder.
- Por que você está aqui? – Indaga ela, de repente. – E, pelos céus, o que você fez para que Ana Rosa te deixasse morar nesse buraco, logo ela, que adora bancar a anfitriã?
Lucas engole em seco.
- Violeta, sente-se aqui.
Ela obedeceu, sem perder a postura altiva.
- Quer um cigarro? – Pergunta ele, pegando o maço do bolso e encostando-se na escrivaninha.
- Você fuma? – Ela o encara com os olhos semicerrados. – Eu odeio cigarros.
Lucas dá de ombros, sem jeito, jogando o maço em cima da cama.
- Parece que eu vou ter que parar, então.
Violeta ergue as sobrancelhas.
Lucas se aproxima dela, dando-lhe um beijo.
- Você é tão foda...
- Você já me disse isso.
- Eu sei. E quero continuar dizendo.
Ela se levantou e continuou a beijá-lo.
Depois Lucas a abraçou, e ela enterrou o nariz entre o pescoço e o ombro esquerdo dele. O cheiro dele parecia cheiro de chuva.
- Eu vou voltar. Só vim desejar boa noite. – Diz ela, de repente, recuperando-se do transe. – Vou voltar antes que Ana Rosa venha atrás de mim.
- Tudo bem.
Ele a beijou mais uma vez e a viu partir na direção da casa, deixando-o sozinho com o jardim, a noite e uma lua que o observava como um olho cego no céu.

CONTINUA

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