“Já matei alguns sentimentos,
mas foi em legítima defesa”
(Zack Magiezi)
- Quer maçã? – Pergunta Violeta.
Lena ergue os olhos do celular.
- Não, obrigada.
Violeta sacode os ombros e crava os
dentes na maçã vermelha. E mastiga. Ela olha para o outro lado do refeitório.
Lena segue o olhar dela.
- É, parece que agora você pode encará-lo. Ele nunca vai ter
coragem de olhar pra você de novo.
Lena falava de Fernando, claro. E
apesar do tom usualmente azedo e zombeteiro de Lena ser para Violeta a melhor
qualidade da amiga, doeu daquela vez.
Talvez ela tivesse se precipitado.
Talvez Fernando fosse apenas um
rapaz bonito e tímido que a achava bonita, mas ainda estivesse criando coragem
para falar com ela.
Talvez ela tivesse arruinado
qualquer chance de conhecer melhor o garoto, e em fim descobrir suas reais
intenções.
Violeta balança a cabeça.
- Não é justo, Lena. Por que eu
sinto como se tivesse perdido algo? Eu não deveria estar feliz por ele parar de
me encarar?
Lena a olha e franze a testa com
franqueza.
- Porque você perdeu, sim. Perdeu a
chance de ser sutil e deixar as coisas acontecerem.
- Sabe o que eu vou fazer? – Indaga
Violeta, trincando os dentes e voltando a olhar para Fernando, que escrevia em
um caderno, parecendo muito concentrado. – Eu vou amarrá-lo a mim. Deixá-lo
fodidamente apaixonado. Fazê-lo rastejar e depois mastigar o coração dele como
faço com essa maçã, só porque ele conseguiu provocar o meu.
Lena balança a cabeça, sem se
alterar.
- Nem preciso dizer nada, sei que
você não é idiota o suficiente para fazer isso. Amarração de amor, Vi?
- E se eu quiser ser idiota pelo
menos uma vez?
- Não vai ser só uma vez. Vai ser
uma idiotice que você vai carregar pelo resto da vida.
- O que eu faço, então? Eu
simplesmente não consigo parar de pensar qual é o problema dele.
- Se lembre de que ele não é problema
seu. – Provoca Lena. – E vá pra outra. Cadê o nosso amigo rockeiro que também
te come com os olhos?
Violeta dá de ombros.
- Eu não sei. Não o vi hoje. Será
que eu fui amaldiçoada? Será que todos os caras do mundo vão começar a me
encarar e nunca falar comigo?
Lena aperta a mão dela sob a mesa.
- Apenas dê tempo ao tempo. E pare
de ser uma devoradora de maçãs e corações.
Violeta não respondeu. Apenas
continuou a encarar Fernando Bragança à distância enquanto dava mais uma
mordida na maçã, sentindo um leve arrepio na espinha.
***
A primeira semana de aula de Lucas chegava ao fim.
Na tarde de sexta-feira, o garoto
chegou a Pensão depois da aula e foi direto falar com Ana Rosa, que estava
plantando algumas mudas.
- Estou nervoso – comentou ele,
encarando os próprios pés.
- Vai dar tudo certo, guri – diz Ana
Rosa, secando o suor da testa com a luva de jardinagem.
- A senhora não me contou o que
planejou – disse Lucas, tenso. – A senhora nunca me diz nada...
Ana Rosa se ergueu, batendo a terra
do avental.
- Não tenho nada pra dizer. Vou
fazer como fiz com o Samuel. O ritual das sete encruzilhadas.
Lucas esperou que ela continuasse.
Ana Rosa se aproximou dele, e Lucas
a achou muito velha naquele momento.
- Hoje é a primeira noite de lua
cheia desse mês, e você vai beber uma poção que eu preparei. Mas para que ela
tenha efeito, é preciso que você esteja sob a luz do luar, em uma encruzilhada.
Lucas a olhou, assombrado.
- Encruzilhada? Tipo... Solto por
aí? Mas... E o quarto? Não é justamente para isso? Para que... Não haja perigo?
- É o único jeito. O quarto serve
para as outras noites. Mas na noite de plenilúnio, você ficará na encruzilhada.
Serão sete encruzilhadas, sete rituais, sete luas cheias, sete meses. É
necessário para que a poção funcione e para que você não enlouqueça. Se não
levar o cão para passear de vez em quando, ele vai matar você.
- Eu prefiro que me mate – cospe
Lucas – do que matar outra pessoa.
Ana Rosa o encara, mas pela primeira
vez o garoto não desvia o olhar.
- Então vamos tratar de que ninguém
precise morrer. Me dê ao menos um pouco da sua confiança. Sou sua última
esperança, não sou?
- Por favor – sussurra Lucas em
resposta, a voz rouca pelo medo. – Não sei como fazer isso. Não sei como controlar.
Quando aconteceu pela primeira vez eu fiquei tão apavorado... E dessa vez vai
ser mais forte. E eu estou me perdendo totalmente.
- A sua besta precisa ser exercitada
antes de ser exorcizada. – As palavras de Ana Rosa o fizeram se calar, porque
soaram mais sombrias do que qualquer coisa que aquela bruxa já tivesse dito. –
Ansiedade só vai atrapalhar. Aceite logo essa praga como parte da sua natureza,
por hora. Você só tem que seguir as minhas instruções.
Lucas assentiu, desgostoso.
Sentiu um rugido satisfeito dentro
de si mesmo.
As trevas estão
dentro de mim.
***
- Por Jesus e Buda, Fernando. – Kenji agitou as baquetas no ar. – Se você errar de novo, juro que coloco o padre Eulálio com um cavaquinho no seu lugar.
Fernando
dá de ombros, cabisbaixo, embora soubesse que Kenji só estava brincando com ele.
Aquele era Kenji, japonês de fábrica, morava na Liberdade e tudo. Mas quando
não estava ajudando os pais a servir sushi no restaurante deles, era o melhor
baterista que Fernando conhecia, e a melhor pessoa também.
Eles
eram amigos desde a infância. A mãe de Kenji era católica, e sempre o arrastava
com ela para as missas. O pai era budista e raramente aparecia por lá. E Kenji
era uma espécie de viciado em animes folclóricos, que via na Ordem a chance de
realizar o seu sonho de ser um ninja caçador de demônios.
-
Foi mal. – Murmurou Fernando, irritado consigo mesmo por estar errando tanto em
uma música que não era tão complicada. – Não estou muito legal hoje.
-
Quem é ela? – Indagou Giulia, a outra guitarrista, estourando uma bola de
chiclete.
- O
que? – Fernando franziu o cenho.
-
Bobão. – Ela sorriu. – Está assim por causa de alguma menina, não é?
Fernando
balançou a cabeça, rezando para não ficar vermelho, porque o rosto de Violeta
foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
-
Nada haver.
Ele agradeceu mentalmente por nenhum dos seus amigos da banda e da
Ordem estudar no mesmo colégio que ele. Ou já teriam percebido. Já saberiam
que Violeta o havia olhado nos olhos e o chamado de covarde, com toda a
perversidade que uma bruxa poderia colocar em palavras.
-
Fernando, se você não transa e não tá a fim de fazer música, fala logo. A minha
garganta não é de ferro.
Aquele
era Jonathan, o vaidoso e petulante vocalista. De todos ali, era de quem Fernando
menos gostava, embora ele cantasse bem.
-
Que bela coisa para se falar, quando estamos no porão de uma igreja. – Ironiza
Fernando.
- E
daí? – Jonathan dá de ombros. – Eu não fiz voto de castidade. Estou aqui pela
banda. E pela Ordem.
Fernando
balança a cabeça, se sentando em um banco de madeira e fingindo afinar as
cordas da guitarra.
Mas
a verdade era que ele estava com raiva.
Os
olhos castanhos cheios de amargura e desafio de Violeta não lhe davam paz,
invadindo todas as suas lembranças.
Você é um belo de um covarde.
-
Pessoal, não vamos perder o foco. – Era Giulia, com sua voz mais autoritária. –
Se quisermos divulgar a banda e atrair mais público, vamos ter que arrasar.
Talvez devêssemos pegar alguma coisa mais legal, tipo Coldplay.
-
Você quer tocar Paradise? – Indaga
Kenji, com ar divertido.
- Prefiro The Scientist. – Declara Jonathan.
- Eu
não sei. – Giulia tomba a cabeça para o lado. – O que você acha, Fernando?
-
Tanto faz.
- Eu
gosto de Violet Hill. – Diz ela. – Mas
acho que não é tão famosa quanto as outras.
Fernando
ergue a cabeça no mesmo instante.
-
Vamos tocar essa.
- Violet Hill? Você conhece?
-
Não. Mas eu quero tocá-la.
***
Como em todas as sextas-feiras, Jaime tinha aulas de judô, e Lena foi ao shopping encontrar Violeta depois do seu turno na academia, para irem juntas pra casa.
Violeta já havia terminado, e já
havia pego a bolsa e se despedia do chefe quando Lena chegou.
- Novidades? – Perguntou.
- O mesmo de sempre. Jaime me troca
por um quimono toda sexta à noite!– Brinca Lena, em falso tom de aborrecimento.
– Estou pensando em pedir um divórcio.
Violeta ri.
- Faz tempo que não saímos juntas.
Porque não aproveitamos que estamos aqui e vemos um filme?
- É, podemos fazer isso. O que tem
de bom em cartaz?
Violeta ia responder, quando o
celular dela tocou.
Era Ana Rosa.
Violeta sorriu e colocou no viva voz.
- Fala, tiazinha.
Lena riu.
- Olha o respeito, guria! Onde você
e a namoradeira estão? – Indaga Ana Rosa, do outro lado da linha.
- Ainda no shopping – diz Violeta. –
Vamos ver um filme.
- Não, senhorita! – Ralha Ana Rosa.
– Peguem o ônibus e venham direto pra casa. Direto! Já está bem tarde...
- E daí? – Pergunta Lena, sem
entender.
Ela e Violeta se entreolham,
confusa.
- E daí?! – Grita Ana Rosa. – Vocês
não ficaram sabendo? Tem um atirador na região! E ele está matando mocinhas
inocentes por aí...
- Não fiquei sabendo de nada disso.
– Diz Lena, desafiadora.
- Nem eu – concorda Violeta.
- Pois estão sabendo agora! – Berra
Ana Rosa. – Não se atrevam a me desacatar, senhoritas. Venham pra casa. Tem
torta de espinafre no forno.
- Você vai sair? – Indaga Violeta.
- Não é da conta de vocês.
- O atirador não mata bruxas velhas?
– Provoca Lena.
Ana Rosa xingou e as ameaçou antes
de desligar o telefone, que, pelo som, foi batido com força no gancho.
Lena e Violeta se entreolharam,
incrédulas.
- Ela me tira do sério. – Comenta
Violeta.
- Às vezes eu acho que ela está
tentando nos deixar loucas. – Rebate Lena.
- É melhor irmos mesmo pra casa –
suspira Violeta. – Ou ela vai conseguir mesmo nos deixar tão malucas quanto
ela.
***
Uma mulher
extraordinária espalhava animais mortos pela floresta no meio da noite...
Ana Rosa Arabella jogou o último
cadáver de roedor no mato, dando um suspiro de alívio.
Havia feito um mapeamento perfeito
da área, planejado tudo... Agora era só cruzar os dedos para que nada desse
errado.
Olhou em volta, pensativa.
Ela havia penetrado bastante na
floresta, fazendo uma trilha com os pequenos corpos de animais, que começava na
encruzilhada e ia até o bosque.
Não havia casas por perto, e o
caminho era bastante longe da estrada para que houvesse um risco muito alto de
alguém aparecer por ali naquela noite.
A mulher, então, dobrou o saco onde
carregara os animais e abriu caminho entre árvores e arbustos até onde sua
velha e leal caminhonete estava estacionada, próxima ao cruzamento da avenida que
levava para fora da cidade com uma rua onde só haviam terrenos para serem
loteados.
Era uma encruzilhada ideal.
Ela olhou para o garoto que a
esperava, sentado dentro da caminhonete, cabeça apoiada no vidro e olhar
distante. Um olhar que provavelmente observava a cruel Lua Cheia.
Ora... Ele ainda
é uma criança,
pensou, abrindo a porta da caminhonete.
- Já está na hora, guri – disse,
cautelosa. – Já passa das onze.
Lucas encarou aqueles olhos sábios
por trás dos óculos quadrados.
- Certo. Melhor... Eu ir.
Ele saltou o carro e se encostou a
um poste que lançava uma fraca luz, no meio da encruzilhada.
Devagar, com a mente um pouco
distante, Lucas deixou a mochila que trazia em um canto, escondida por um
arbusto.
Ana Rosa continuou observando-o, com
pena, embora tentasse não demonstrar.
- Você bebeu a poção?
- Sim. Aquilo tem gosto de café
velho, sabia?
- Que bom, guri.
- Não vai me contar o que tinha
nela?
Ana Rosa deu um meio sorriso.
- De jeito nenhum. Venho te buscar
assim que o sol nascer. – Diz, fazendo uma longa pausa. – E... Guri, vai dar
tudo certo.
Decidida, ela foi até ele e lhe deu
um beijo na testa antes de partir.
Foi a coisa mais maternal que Ana
Rosa Arabella fizera por alguém até então, e foi justamente o que Lucas mais
precisava naquele momento.
- Obrigado. – Sussurrou ele, vendo a
caminhonete partir, deixando-o no silêncio solitário da noite.
Olhou em volta.
Sozinho na encruzilhada.
Com um suspiro, Lucas começou a se
despir.
Hoje a noite não seria dele.
Seria do monstro.
Ele até podia sentia a fera se
vangloriando dentro do próprio peito.
***
Fernando não conseguia dormir.
Tá legal, ele não deveria ter tomado
dois cappuccinos grandes, com o pessoal da banda quando já era
tarde, então de certa forma merecia a insônia.
Mas o que ele não merecia de jeito
nenhum era ter Violeta e toda a sua presunção gritando na sua cabeça.
Ela está
acabando comigo. E eu estou deixando.
Voltou a abrir o caderno onde havia
começado a fazer anotações, mas não conseguia prosseguir com os apontes
calculistas.
Pulou duas páginas e começou a fazer
rabiscos.
Quase sem querer, começou a escrever
palavras.
Versos.
Jogar tudo o que o incomodava no
papel.
Quem sabe assim ele não compunha uma
música nova?
O
seu veneno escorre da sua boca em forma de uma maçã, e depois rodopia pra
sempre na minha cabeça.
Fernando leu o que acabara de
escrever, mortificado.
O que estava acontecendo com ele?
Porque ele estava deixando as coisas
chegarem a esse ponto?
Fez menção de rasgar a folha e amassar.
Picar. Queimar.
Mas apenas fechou o caderno,
irritado, e foi se deitar.
Ele estava ciente de que, se
permitisse que Violeta tivesse qualquer poder sobre ele, ela mastigaria o seu
coração do mesmo modo tranquilo com que mastigava uma maçã no refeitório da
escola.
Porque ele ainda a observava, em
cada movimento. Só havia aprendido a ser mais discreto.
***
Violeta rodopiava pelo jardim de rosas da Pensão Arabella.
Percebeu, de
repente, que o portão estava aberto.
Curiosa, avançou
até ele.
Quem teria
deixado aberto?
Lena? Ana Rosa?
Sr. Cardoso?
Foi então que
ela percebeu que havia alguém parado em frente ao portão, como se esperasse um
convite para entrar.
E era Fernando
Bragança.
Violeta sorriu.
Ele sorriu de
volta, e esticou a mão na direção dela.
Ela olhou e viu
que ele lhe oferecia uma maçã.
A garota deu um
passo na direção dele para alcança-lo, mas nesse mesmo momento o portão se
fechou sozinho, batendo com força.
Fernando deixou
a maçã cair e rolar no chão, agarrando as grades e sacudindo-as, enquanto Violeta,
confusa, também puxava as barras de aço do portão que os separava, mas o portão
não abria.
Foi ele quem viu
primeiro, antes que ela pudesse perceber.
O monstro, logo
atrás de Violeta, arreganhando os dentes.
Fernando
arregalou os olhos verdes.
- Violeta,
cuidado!
Violeta se sentou na cama, em um
estado entre pânico e pavor.
Lena dormia e o quarto estava em
silêncio.
Demorou para que o coração dela
parasse de bater com tanto desespero e ela conseguisse voltar a se deitar.
Ela tentou se lembrar do pesadelo,
mas parecia que sua cabeça estava fazendo questão de apagá-lo, e os detalhes já
estavam sumindo.
Violeta voltou a sentir sono.
Um drama se
aproxima...
Foi seu último pensamento confuso antes de voltar a dormir. Não sonhou mais nada naquela noite.
CONTINUA
Giovanna Rubbo nem pense em deixar a Violeta com o Fernando no final da história hein?! Não ligo para esse drama não. Gosto tanto do Lucas... *-----* Ele é um amor. Não quero saber de ficadas hein? No final ela vai ter que escolher um só, por favor, que seja o Lucas (dedos cruzados).
ResponderExcluirE eu amo o jeito que a Ana Rosa diz "guri" toda hora.
Mas eu gosto do Fernando... :P kkkkk
ResponderExcluirVeremos, Carla, veremos u.u
COMO ASSIM???! :'( to chorosa
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