“Se você quer uma rosa vermelha,
terá de fazê-la de música, ao luar, e tingi-la com o sangue do seu próprio
coração.”
(O Rouxinol e a Rosa, Oscar Wilde)
- Obrigada pela carona! – Agradeceu
Ana Rosa.
O motoqueiro fez um gesto cordial e
buzinou antes de arrancar, fazendo barulho na rua quase escura.
Ana Rosa pegou a chave no bolso do
avental e destrancou o cadeado do portão de ferro.
Olhou para o seu impecável jardim,
com satisfação.
Amava as suas rosas na hora do
entardecer mais do que nunca, quando o perfume delas subia e impregnava tudo, e
todas as cores se despediam dela antes de se perderem no manto negro da noite.
Ela se dedicava ao jardim. Era
preciso que as flores a amassem de volta. Era preciso que todas elas fossem
regadas com seu próprio suor, seu sangue, suas lágrimas.
Era assim que se fazia um vínculo
verdadeiro.
Escutou passos atrás de si, e se
reprendeu no mesmo instante por sua distração.
Nunca esqueça o
portão da Pensão Arabella aberto...
***
Lucas já estava parado em frente à Pensão há vinte minutos, do outro lado da rua, escondido pela sombra de uma árvore, quando viu a senhora saltar da moto.
Reconheceu Ana Rosa, mesmo nunca a
tendo visto.
Ela podia ter de 25 a 50 anos, não
dava pra saber.
Era exatamente como seu avô a
descrevera.
O cabelo alaranjado queimado de sol
era crespo e volumoso, e mesmo com os óculos de armação reta ela não parecia
ser uma mulher muito séria.
Mas Lucas sabia que ela podia ser perigosa.
Com Ana Rosa Arabella não se brinca.
Viu a mulher entrar e ficar
admirando as flores dos canteiros.
As rosas eram importantes.
Faziam com que a Pensão fosse o que
era.
Devagar, Lucas atravessou a rua e
entrou – afinal, o portão estava aberto.
Ana Rosa se voltou, alerta.
Os dois se encararam.
Bastou um único instante para que
ela percebesse.
Admiravelmente ágil, Ana Rosa sacou
um canivete do bolso e o girou nos dedos, em uma discreta exibição da própria
capacidade de causar ferimentos graves.
- Vai embora – Diz ela, pausadamente,
mas autoritária. – Não tem nada pra você aqui. Saia.
Lucas não deu um único passo para
trás, nem para frente. Apenas soltou a mala no chão e ergueu os braços, como um
ladrão rendido pela polícia.
- Foi Samuel Matarazzo quem me
enviou aqui. – Disse ele, olhando-a nos olhos. – Disse que a senhora poderia me
ajudar.
Ana Rosa esqueceu um pouco do
canivete, parecendo chocada.
- Ah, não! Você é...?
- Lucas Matarazzo. Neto dele. –
Responde o garoto, abaixando as mãos.
Ana Rosa sentiu parte do seu próprio
mundo desabar, mas se conteve. Não se dava bem com fortes emoções, muito menos gostava
de demonstrá-las, mesmo que o momento fosse de extrema frustração.
Para piorar, ela sentiu a
aproximação de Lena e Violeta. As meninas estavam chegando.
- Venha comigo. – Disse. – Depressa.
Se encaminhou para o fundo do
jardim, contornando a antiga e enorme Mansão Arabella – hoje um casarão precisando
de manutenção conhecido como Pensão Arabella, onde Ana Rosa vez ou outra
alugava um quarto para hóspedes especiais.
Hesitante, Lucas a seguiu.
Ana Rosa tirou o molho de chaves do
bolso e abriu a porta do velho quartinho nos fundos da casa com certo esforço.
A fechadura estava enferrujada.
Quando a porta se abriu, Lucas
tossiu com a poeira.
O cômodo era pequeno. Havia um
armário, uma cama estreita, uma pia e um antiquíssimo fogão a lenha.
Fala-sério-será-que-estou-em-um-museu?
- Ah, não. Não se atreva a reclamar,
rapaz. – Diz Ana Rosa, observando a expressão dele.
- Eu não ia reclamar. – Murmura
Lucas, colocando a mala sobre a cama.
Notou que haviam duas portas no
quartinho além daquela por onde ele havia entrado.
- Ali é o banheiro. – Disse Ana
Rosa. – E ali... Bem, acho que você já sabe. Seu avô deve ter dito.
Ela foi até a pesada porta de metal
e abriu o pesado ferrolho. Lucas espiou e viu um corredor escuro e úmido.
Sentiu arrepios.
- Vou ser franca com você, guri –
começou Ana Rosa. – Não vou prometer te ajudar. Por mais apreço que eu tenha
pelo Samuel e lamente pela sua situação, tenho duas moças sob a minha proteção.
E não posso colocá-las em uma situação de risco para ajudar você.
Lucas engoliu em seco.
Situação de risco.
Não que ele não soubesse, mas doía
ouvir aquilo.
Como um murro bem no meio da cara.
- Bom, vou pensar e te dou minha
resposta amanhã. – Disse Ana Rosa, começando a sentir pena, embora sua
expressão permanecesse indiferente. – Daqui a pouco irei trazer lençóis limpos,
comida e uma televisão. Assim você vai ficar um pouco mais confortável.
- Obrigado. – Foi tudo o que Lucas
conseguiu dizer.
Ana Rosa saiu sem responder.
***
- Ele é tão bonito. – Dizia Violeta, muito séria. – Mas tão sozinho.
Lena concordou.
- E completamente hipnotizado por
você. Me diga, Violeta, você colocou o nome do Fernando na boca do sapo?
Violeta ri.
- Lena, por favor, pare de me dar
ideias.
As duas pararam diante do portão da
Pensão Arabella.
- Eu tenho certeza de que tranquei
quando saí. – Diz Lena, pegando o cadeado aberto, com a sobrancelha erguida. –
Será que Ana Rosa deixou assim?
- Que estranho. Eu posso jurar que
acabei de vê-la indo pra trás da casa com um cara. - Disse Violeta,
desconfiada.
- Deve ser algum motoqueiro. – Sorri
Lena, com ar malicioso. – Ele estava de jaqueta de couro e capacete?
– Não deu pra ver. Já está muito
escuro.
As duas deram de ombros e entraram,
e Lena trancou e checou o cadeado do portão.
***
- Quem está aí? – O Sr. Cardoso grunhiu quando a porta bateu, erguendo o pescoço e arrumando os oculozinhos no rosto enrugado.
Estava sentado na poltrona, pra
variar, diante da TV ligada em uma das novelas que ele jurava que nunca
assistia.
- Somos nós. – Diz Violeta, enquanto
ela e Lena atravessavam a saleta. – O senhor precisa de alguma coisa?
O Sr. Cardoso vasculhou os bolsos da
camisa branca.
- Meu remédio – disse, visivelmente
chateado. – Ainda bem que você perguntou. Esqueci meu remédio no quarto de
novo.
As meninas fingiram tossir para
disfarçar o riso.
Adoravam o velho e suas manias
esquecidas.
- Eu vou buscar pro senhor. – Diz
Lena, já subindo as escadas para o segundo andar.
Violeta se sentou na outra poltrona,
largando a bolsa no chão. Ia perguntar se podia mudar de canal, mas então
escutou a porta da cozinha bater.
Ana Rosa.
Disparou para lá, tentando fingir
que não queria nada.
Viu a mulher atarefada, cortando
cenouras na pia.
- Oi, tia. – Disse, sentando-se no
balcão na cozinha. – Quer ajuda?
- Não é necessário. – Disse Ana
Rosa, sem ao menos olhar para ela. – E já disse pra não me chamarem de tia. Trancaram
o portão?
- Lena trancou quando chegamos. –
Respondeu Violeta. Fez uma pausa antes de perguntar. – Quem é o novo hóspede?
Ana Rosa largou a cenoura e se
voltou para ela, acenando com a faca para Violeta enquanto falava.
- Ora, moça. Não é da sua conta. –
Disse, visivelmente aborrecida. – Já aviso que deve ficar na sua. O rapaz não
vai ficar por muito tempo.
Violeta segurou o sorriso.
Que mulher
extraordinária...
- Então é um rapaz? Ele é bonito?
- Não. – Disse Ana Rosa, brusca,
voltando para as cenouras.
- Porque ele ficou no quartinho lá
fora, e não em um dos quartos lá de cima?
- Cuide da sua vida, Violeta. –
Bronqueia Ana Rosa, revirando os olhos. – Se quer ajudar, pegue a televisão
pequena, do quarto 2, lençóis, fronhas e um cobertor e leve para o quartinho.
Não demore. Vá depressa. E não fale com ele. Coloque tudo no chão perto da
porta, bata e volte correndo. Se me desobedecer, vou picar os seus dedos e sua
língua, do jeito que estou fazendo com essas cenouras.
Violeta riu do discurso da tia, e
subiu para pegar as coisas.
Passou por Lena no meio do caminho,
que vinha do quarto do Sr. Cardoso e trazia nos braços pelo menos uma dúzia de
frascos de remédio..
- Eu não sabia qual deles era. –
Explicou Lena.
- Guarde uma pílula de cada pra mim.
– Pede Violeta. – Dois do que servir para dor-de-cabeça. Vou desobedecer Ana
Rosa.
***
Lucas estava deitado na cama estreita, olhando para o teto.
Não havia nem tirado os sapatos.
Estava em um daqueles momentos de
mil pensamentos e nenhuma ação.
Então alguém bateu na porta.
- Quem é? – Perguntou, sem se mexer.
Oh, vida
cruel...
- Ana Rosa me mandou trazer a roupa
de cama e a TV. – disse uma voz feminina do outro lado da porta.
Lucas pensou em se levantar, mas seu
corpo não quis obedecer.
- Obrigado. – Disse, fechando os
olhos. – Mas não posso atender agora.
- Ok. – Disse a voz, dessa vez
ligeiramente aborrecida. – Vou deixar tudo aqui na porta.
- Valeu. – Respondeu Lucas,
virando-se na cama e enterrando o rosto no colchão.
Quero sumir para
sempre...
***
- Lena? Ainda está acordada? – Perguntou Violeta, deitada na cama, para o quarto escuro.
As duas dividiam o sótão, um enorme
quarto no “topo” da Pensão.
- Agora tô. Porque? – Perguntou
Lena, com a voz um pouco sonolenta.
- Eu só estava pensando... Estou
muito encrencada por ter ameaçado arruinar a vida da Briana?
- Não. Mas vai estar se Ana Rosa descobrir.
E é melhor rezar a todos os deuses pra Briana não morrer queimada em uma sessão
de bronzeamento artificial ou algo do gênero, porque aí sim você pode sentar e
esperar aldeões com tochas e forcados cercarem a Pesão.
Violeta ri.
- Eu não tenho essa sorte.
As duas ficaram em silêncio por mais
alguns minutos.
Violeta se remexeu na cama.
Lena deu um suspiro impaciente e
ascendeu um abajur.
- O que foi, Violeta? Eu sei que não
era isso que você queria me perguntar.
Violeta se senta na cama. Era inútil
tentar mentir pra Lena.
- Certo. Eu acho que o Fernando
sabe.
- Sabe nada. Ele não tem como saber.
Não de verdade. Chame logo esse cara para um cinema e deem uns beijos. Vai fazer
bem pra vocês.
- Mas...
- Boa noite, Violeta.
Lena apagou a luz, e Violeta voltou
a se deitar.
Sabia que, no fundo, Lena estava
apenas com medo.
Com medo de que alguém pudesse mesmo
descobrir quem elas realmente eram.
***
No dia seguinte, Ana Rosa esperou
que as meninas saíssem para o colégio e se dirigiu até o quartinho nos fundos
da propriedade.
Bateu na porta. Duas vezes.
Um pouco de barulho, e Lucas a abriu.
Ana Rosa ergueu uma sobrancelha,
analisando o garoto.
Descabelado. As mesmas roupas
amarrotadas da véspera. Olhos inchados. Um cigarro acesso na mão. E uma música
estranha, muito estranha, tocando dentro do quarto.
- Pelos céus... O que você está
escutando aí, guri?
Ele bocejou antes de responder.
- Sympathy For The Devil – respondeu ele, com voz de sono. – É o
cover do Guns n’ Roses.
- Que seja – diz Ana Rosa, com uma
espécie de desprezo na voz. – Escute o que quiser, contanto que o som não
chegue até a minha casa. Pensei bastante e resolvi te ajudar com seu problema.
Mas haverá algumas condições.
- Serei responsável. – Respondeu
Lucas, mais do que depressa. – Prometo.
- Não é só isso – diz Ana Rosa,
ajeitando os óculos no rosto. – Pra começar, já aviso que você deve manter
distância das minhas sobrinhas, que moram comigo na Pensão. Elas são meninas
ainda muito jovens, e estou cuidando delas. Então, se chegar perto de uma delas,
não vou pensar duas vezes antes de cortar seu pintinho com minha tesoura de
jardinagem.
Lucas engasgou.
- Recado entendido.
- Não me leve à mal, sou um pouco super protetora. – Continua Ana
Rosa, com um sorriso doce. – Voltando ao assunto: você já sabe o que deve fazer
naqueles dias especiais do calendário, não é? Ótimo. Então, minha última
condição para que você permaneça aqui é que vá ao colégio.
- Como?! – Lucas arregalou os olhos.
Ir a escola... Como um cara normal?
Era isso mesmo? Professores, livros e estudos no meio de tudo aquilo?
- Não pode estar falando sério... –
Lucas ainda a olhava, petrificado.
- Falo muito sério, sim senhor.
Amanhã... Depois de amanhã, no máximo, você irá ao colégio. Enquanto estiver
sob o meu teto, não será um ignorante sem instrução. A educação é muito
importante para um adolescente da sua idade, e não há desculpa. As aulas são no
período matinal, guri.
- A senhora nem sabe a minha
idade...
- Não pode ter mais do que
dezesseis.
- Quinze.
- Viu? Menos de dezesseis. Vai ao
colégio se quiser continuar aqui.
Lucas revirou os olhos.
Ana Rosa cruzou os braços.
- E não revire os olhos para mim,
Lucas Matarazzo! Se o Samuel estivesse aqui, ele iria lhe dar umas bofetadas
bem merecidas... Está sendo mal agradecido.
O garoto suspirou.
- Me desculpe. Irei me comportar e
fazer tudo o que a senhora mandar. E... Obrigado.
Ana Rosa assentiu, em tom
presunçoso, mascando um chiclete.
- De nada, guri. E agora vá escovar
os dentes, por uma roupa limpa e lavar o rosto. Tem chuveiro no banheiro desse
quarto, sabia? E penteie esse cabelo, pelo amor de Deus... Quer que eu o corte
para você?
Lucas recuou um passo.
- Não, valeu.
- Mas está caindo no olho, rapazote!
- É pra ficar assim. – Disse Lucas,
um pouco constrangido. – Faz parte... Do meu estilo.
Ana Rosa deu de ombros.
- Que seja... Agora vá se lavar e depois vá à cozinha da
Pensão, tome um bom café. E então me encontre no jardim para me ajudar. Não vai
ficar à toa enquanto estiver sob o meu teto. Cabeça vazia é a oficina do Diabo,
eu sempre digo.
Ana Rosa lhe deu as costas sem
esperar por uma resposta, colocando um enorme chapéu de jardinagem sobre a
cabeleira alaranjada.
Lucas a observou se afastar,
sentindo uma pontinha de otimismo.
- Que mulher extraordinária... – Murmurou
para si mesmo.
CONTINUA
Adoro a Ana Rosa, hahaha, a personalidade dela é tão.... Sei lá, fácil de gostar, pelo menos pra mim, hahaha. E o Lucas é um doce!!! Quero que a Violetta fique com ele! Vai ficar ne?!
ResponderExcluirFã nº1 da Ana Rosa aqui <3 Hahaha
ResponderExcluirFicadas sempre rolam, né... XD